Refugiados reconstroem cultura e tradições longe de seus países

Na Europa e no Oriente Médio, sírios resgatam música, costumes e culinária

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Por Jamil Chade  
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GENEBRA - Mohanad Aljaramani vivia em Sweida, na Síria. Mas assim como mais de 5 milhões de pessoas, foi obrigado a deixar o país. Optou, também como muitos, o caminho da Europa. Mas não levou apenas problemas, dramas e desespero. Músico, ele trouxe consigo sua arte nas cordas de seu oud. 

Mahanad Aljaramani. Ele saiu de seu país com uma sacola de roupa e seu oud Foto: Mahanad Aljaramani

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Hoje, pela Europa, tenta manter sua atividade de músico e não deixar que a guerra abafe os sons que ele e outros artistas produziram por anos. “Temos um passaporte, uma identidade e uma música. Nada disso pode ser dissociado”, afirmou Aljaramani, que conta como fabricantes de instrumentos tradicionais de Alepo passaram a produzir em locais subterrâneos até que mesmo esses esconderijos foram destruídos pelas bombas. 

Quando outros membros de sua família ou amigos conseguem sair do país, seu pedido é um só: tragam os instrumentos.

“Reconstruir a Síria não é apenas os muros de prédios. É também preservar sua cultura. É uma forma de resistência à guerra”, disse ao Estado

Seis anos depois do início da guerra e sem uma solução à vista, muitos refugiados espalhados pela Europa tentam agora reconstruir fora da Síria suas tradições e culturas. 

Stephanie Saldana, fundadora do projeto Mosaic, conta ter descoberto que os desabrigados espalhados pela Europa não tinham apenas histórias trágicas para contar. Mas também têm sementes, instrumentos musicais, canções, vestidos e conhecimentos que, mesmo com as bombas, jamais serão anulados. Sua proposta é tentar reunir as histórias e peças dos refugiados, na esperança de montar um banco de dados. 

A pesquisadora conta que teve a ideia depois que, numa exposição organizada pela Unesco sobre o patrimônio histórico da Síria em perigo, seu deu conta que o foco estava sendo apenas os prédios e seus muros. “Mas onde estavam as pessoas? As tradições que podem ser perdidas?”, questionou. 

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Em praticamente todas as grandes cidades europeias, a chegada dos sírios fez surgir novos restaurantes árabes. Mas a reconstrução não se limita às receitas. Já em 2015, sementes que o cientistas sírios tinham guardado em um depósito mantido pela Noruega, no Ártico, foram retornados ao Oriente Médio para que, no Líbano, pudessem voltar a plantar uma espécie de trigo resistente às condições do local.

Com a guerra e uma seca sem precedentes, produtores sírios viram a espécie desaparecer. Agora, ela volta a ser preservada no vale do Beeka, no Líbano.

Dono de uma loja de instrumentos orientais em Paris, o sírio Khaled Bako conta que também perdeu seu fornecedor de oud quando a guerra começou em seu país de origem. “O ateliê que fabricava alguns dos melhores instrumentos foi destruído em Alepo e seu dono fugiu para a Turquia. Hoje, importo de sírios que abriram uma pequena produção na Alemanha”, conta ainda Bako.

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Milenar. Outro que levou consigo para a Europa seu conhecimento foi Hassan Harastan, conhecido como o melhor fabricante do tradicional sabão de Alepo, cidade destruída pela guerra. O local, porém, era conhecido internacionalmente por sua produção milenar de sabão. Hoje, todas as 50 fábricas que existiam na região estão paralisadas. “Quando a guerra começou, a fábrica de Hassan foi inteiramente destruída, tomada pelo fogo”, contou ao Estado o empresário sírio-francês, Samir Constantini. “Sua casa foi vandalizada e ele teve de fugir com sua família para o Líbano”, disse também. 

O problema era que, com o fim de sua produção, empresas pela Europa que distribuíam o produto ficaram sem o fornecimento do sabão. “Fui atrás dele e o encontrei no Líbano”, contou Constantini. “Decidi convidá-lo a se mudar para a França e, juntos, reconstruir a fábrica de sabão de Alepo”, contou ainda.

Hassan aceitou. Mas se recusou a entrar na Europa como refugiado. Ele fez questão de entrar na França como uma pessoa com um contrato e um plano de negócios, o que retardou seu visto. Mas ele acabou sendo aceito. 

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Para fabricar o sabão de Alepo, a empresa na Europa não teve problema em encontrar azeite de oliva de qualidade. Mas teve de passar a importar louro da Turquia.

“Hoje, com a técnica ancestral de produção de sabão, produzimos de 4 a 7 toneladas por semana e exportamos para toda a Europa e até para a Ásia. Garantimos que o sabão de Alepo, que é emblemático de um país, não desapareceu”, acrescentou.

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