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Reflexões de um mundo pós-colonial

Com Tabu, Miguel Gomes revela-se um sopro de vida num mercado europeu carente de novos nomes

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Por Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Quem tinha alguma dúvida sobre a inovação presente nos filmes do português Miguel Gomes, não deve perder Tabu, seu trabalho mais recente. Gomes já havia surgido como promessa do novo cinema do seu país com Aquele Querido Mês de Agosto, que também foi atração da Mostra. Um filme estranho, indeciso (propositalmente) entre o documentário e a ficção. Uma obra em progresso, que ia se construindo diante dos olhos do espectador, como se este por fim participasse da trama que ali se inventava. Agora, com Tabu, temos uma outra série de relações. Primeiro, a opção pelo registro em preto e branco, já explícita na primeira e mais importante menção, a do título, à obra de Murnau. Relação do civilizado com as sociedades preconceituosamente chamadas de "primitivas". Mas que acabam, muitas vezes, por se revelar não apenas mais sofisticadas do que se pensava, como mais "civilizadas", no fundo, que as nossas. Murnau ia a Polinésia. Gomes vai para a áfrica. É lá, no continente onde Portugal manteve suas últimas colônias, até os anos 1970, que a história começa, uma espécie de fábula com um explorador. Na verdade, se trata de um prólogo, algo lá colocado para imergir o espectador num regime fabular - que será adotado no restante da narrativa, mas em registros diferentes. Em seguida, temos o espaço contemporâneo, em Lisboa, onde uma bela e velha senhora, já um tanto esclerosada, vive com uma empregada negra (lembrança da Mama África) e conversa sempre, com intimidade, com uma vizinha. A filha, ficamos sabendo, mora longe, no Canadá. Aurora é o nome da senhora, numa alusão a mais a Murnau. Ela é viciada em jogo e perde seu dinheiro em um cassino. Fica doente e é atendida pelas pessoas que dela cuidam. No delírio, murmura um nome - Ventura. E essa será a senha para a continuidade da narrativa. Nela, teremos Aurora jovem e casada, morando numa das colônias africanas e convivendo com empregados e um jovem aventureiro que dela se aproxima. A narrativa é toda feita em off, por alguém que conheceu intimamente Aurora nesta fase da vida. O ambiente, aqui, é das tramas coloniais, a convivência europeia com os nativos. Uma certa promiscuidade cultural, com a presença de um certo racionalismo com o ambiente mágico africano. A certa altura, um dos personagens diz que o que está sendo narrado não é bem a realidade, mas uma fábula. Nem precisava dizer. Todos os registros do filme nos impelem para essa sensação de estranhamento. Podemos, portanto, ter algo que, no início, não passa de um mero triângulo amoroso. Talvez até convencional, dadas as circunstâncias, mas que se desenvolve também de maneira surpreendente. Não se está numa colônia à toa. Tudo muda. Inclusive a disposição psicológica para o amor e para a aventura. É como se vivesse dentro de uma certa irrealidade. No meio de um sonho. Há disso nas histórias coloniais de Margueritte Duras e também de Claire Denis. A experiência da África. Não se sai impune dela. E é isso - o passado colonial português - que entra nessa história um tanto melodramática pelas bordas. E cria todo o seu interesse e novidade.De certa forma, e num estilo completamente diferente, Miguel Gomes dá seguimento a essa tradição portuguesa de reflexão sobre a colônia e a sua perda. O grande Manoel de Oliveira já havia feito isso, em especial num filme como Non, ou a Vã Glória de Mandar. Gomes retoma o tema e, em especial, a sensação. Não é que se lamente a perda das colônias. Muito pelo contrário. Portugal saiu da África depois de uma guerra colonial desgastante e perdida de antemão. Saiu tarde demais, pode-se dizer. Mas a experiência colonial deixa marcas. Não apenas nos colonizados, com o caos que ainda sobrevive em muitos países africanos saídos da condição de colônias. Mas produz seus efeitos também sobre os colonizadores. É como se tivessem vivido numa situação irreal e irracional e, no final da experiência, não tivessem perdido apenas uma posse à qual não tinham direito, mas houvessem comprometido a própria alma. Tabu é um cinema da decadência e da reflexão sobre a queda. Decadentista, no que o termo comporta de mais encantador. Com sua veia crítica, Gomes é um sopro de vida num cinema europeu carente de novos nomes. É uma exceção.

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