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'Raul: O Início, o Fim e o Meio', uma cinemetamorfose

Em depoimento exclusivo para o 'Estado', Walter Carvalho conta como foi a filmagem do documentário

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Por Redação
Atualização:

Foi um mergulho profundo no passado, cuja memória está muito clara e não parece tão distante para mim.

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Falo da minha adolescência no Nordeste, quando descobri Elvis Presley num filme, Balada Sangrenta, na mesma época em que Raul, identificado com o roqueiro americano, vivendo em Salvador, tinha a mesma motivação.

Raul assistiu na companhia do amigo de infância Olival, o filme de Michael Curtiz mais de 20 vezes.

Acho que minha identificação, veio exatamente pelos mesmos caminhos que atingiram o menino roqueiro da Bahia nos anos 60, que imitava Elvis Presley com apenas 9 anos de idade, numa gravação caseira que recolhi dos arquivos. Na província, só não virei roqueiro por não ter nenhum talento musical e porque fui incentivado pelo meu irmão Vladimir Carvalho a estudar pintura, além de ter me aplicado o cinema direto na veia, quando me mostrou o livro O Balão Vermelho, reprodução dos fotogramas do filme de Albert Lamorisse, ao mesmo tempo que colocou em minhas mãos os livros do poeta João Cabral de Mello Neto. Foi entre o encantamento das músicas do Elvis, o cinema e os poemas de Cabral que minha vida foi tomando o rumo que, de certa forma, venho seguindo até os dias de hoje.

Denis Feijão, jovem produtor de São Paulo que teve a ideia de produzir um documentário sobre Raul e se associou ao produtor Alain Fresnot, levou o projeto para Jorge Peregrino, vice-presidente da Paramount, que me convidou para dirigir o filme. De pronto aceitei, chamei meu parceiro Leonardo Gudel e mergulhamos fundo numa pesquisa sobre a vida e a carreira artística do cantor baiano.

Filmamos mais de 90 entrevistas entre Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Suíça e Estados Unidos. Contei nessa jornada com a ajuda de Lula Carvalho na fotografia, de Evandro Lima no som, e de Lulu Continentino na arte e dos produtores Rodrigo Castelar e Pablo Torrecillas. Os arquivos da família, dos amigos, da televisão e fotografias encontradas nos baús, juntamente com o material filmado por mim, somaram mais de 400 horas. Partimos então para a montagem durante um ano e seis meses, num embate diário de oito horas por dia, num trabalho insano, quase religioso, na busca do viés que pudesse reconstituir a vida e a obra do grande roqueiro, considerado o pai do rock brasileiro.

Foi uma das experiências mais ricas que já tive ao montar um documentário. Eu e meu parceiro montador dos meus filmes, Pablo Ribeiro, nos isolamos do mundo. Colei na parede um quadro que desenhei e denominei de Genealogia da Trajetória com todos os detalhes dos personagens que fizeram parte da história da vida de Raul Seixas, numa tentativa de cartografar o percurso do artista desde seu surgimento em Salvador até sua morte na cidade de São Paulo.

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Como havia gravado muitas entrevistas, a maior parte serviu apenas para pesquisa, por isso não utilizei diversos dos registros, sobretudo os colhidos em Salvador, onde a grande descoberta foi a entrevista que fiz com o já citado Olival, amigo de infância de Raul. Muitas vezes olhava o quadro Genealogia da Trajetória e pensava que não conseguiria chegar ao fim com as diversas conexões da vida do artista transformado em mito, o menino da Bahia que deu à luz o rock brasileiro. Trabalhando dia e noite sem medir esforço e sem perder o entusiasmo, fomos aos poucos, na solidão da sala de montagem, construindo um filme que estava ali diante dos meus olhos, mas para descobrir as tais conexões narrativas precisava de tempo e de maturação. Leonardo Gudel, que havia trabalhado na pesquisa desde o início comigo, acompanhou a montagem até o final do mesmo modo como foi meu assistente durante as filmagens. Algumas ideias que tive ao me aproximar do universo raulseixista, permaneceram até o final da montagem. Transformei, já na primeira escrita do roteiro, a mosca da sopa de Raul nas motos de Easy Rider, que se misturam com o som de Blue Moon, no ritmo das interpretações de Elvis Presley, com Asa Branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Isto resulta na sequência montada entre o deserto de Easy Rider com o Sertão da Bahia, depois da abertura do filme com o poema de Allen Ginsberg. Inseridos no universo dos depoimentos dos nossos personagens, fomos construindo um dialogo visual, procurando através da palavra e das revelações de cada um os caminhos que pudessem revelar a vida privada e a vida pública do artista Raul Seixas. Raul - O Início, o Fim e o Meio recebeu o ponto final, mas poucas pessoas o assistiram depois de pronto. Agora é a hora de mostrar, a hora de fazer o filme nascer outra vez. Primeiro, nasceu na minha cabeça, depois se desconstruiu durante o processo de filmagem, ficou em retalhos, se recompôs na montagem e terá vida própria quando a projeção das "sombras" na tela branca e no escuro da sala atingir a plateia. De tão breve sua passagem pela vida, o início, o fim e o meio se confundem porque a história ainda não acabou. E foi por todas essas razões que aceitei o desafio de fazer um filme sobre um mito que viveu de sua obra e morreu por ela. Como diz Paulo Coelho: "Raul é uma lenda, e lenda não tem história". Agora, Raul virou filme.

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