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Quatrocentão 1.0

Dinheiro, não tenho. Mas descendo de uns franceses que chegaram a SP há 400 anos

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Para quem chegou a São Paulo a bordo de um busão da Cometa, e nem era leito, quase meio século atrás, sem emprego e com finanças rarefeitas (repare no tom de autobiografia de forasteiro que fez fortuna), deveria servir de consolo a descoberta de que é, de pleno direito, isso que alguns enchem a boca para chamar de quatrocentão, ainda que 1.0. 

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Preferiria o meu em dinheiro, claro. Tivesse nascido um século antes e poderia dizer, como o poeta, que tive ouro, tive gado, tive fazendas. Cheguei tarde. Para quatrocentão 2.0, falta-me grana, além de empáfia. O básico, porém, está na mão: o lustroso pedigree proporcionado por ancestrais de sangue francês que aqui viveram no século 17 e que vieram a dar nome a duas ruas paulistanas. 

Não, não é nos Jardins, nem no Morumbi ou Higienópolis, nem mesmo em Perdizes, bairro onde tenho modesta residência, e sim, vejo aqui no Google, na Vila São Vicente e no Tatuapé, localidades nas quais placas de rua buscam manter acesa a hoje desbotada memória de meus remotos avôs Cláudio e Estêvão Furquim. 

Confesso, envergonhado, não saber o que fizeram eles para merecer tal honraria, e que ainda nem sequer fui conhecer as vias públicas a que seus nomes foram dados. Mas firmo aqui o compromisso, do qual tomo você por testemunha: dia desses vou lá, em peregrinação – ou será safári? – sentimental, para verificar se a família tem sido bem tratada.

Já contei que, na contramão de artrite & artrose, gosto de subir pelos galhos de minha árvore genealógica – ou melhor, de descer por suas raízes, as quais, espero, não haverão de ser superficiais como as dessas tipuanas que temporais paulistanos mais encorpados facilmente põem abaixo. 

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Não pretendo, com tais expedições, garimpar armas & barões assinalados para respaldar orgulhos e vaidades heráldicas, que de resto nunca tive. Conheço meu tamanho. Se um dia me bater vontade de ostentar brasão, vou eu mesmo desenhá-lo, estando desde já decidido que, para ser fiel a certa maldição familiar, um dos campos será ocupado por um cifrão provido de asas, prestes a decolar. 

O que me move, nessas buscas, é a possibilidade de topar com gente interessante, de preferência fora do padrão. Quem sabe bizarrias semelhantes à Maria Francisca das Chagas Werneck – senhorita que, sendo portadora de pilosidades faciais bem mais densas do que um mero buço, acabou por se inscrever, nos anais familiares, como “a prima barbada de Maçambará”, o distrito de Vassouras onde o pai tinha fazenda em meados do século 19. 

Convido você a conferir nas páginas de No Tempo dos Barões, deliciosa obra de outra prima, a Maria Werneck de Castro, essa sem um fio macho a macular o rosto. Assistida até depois de falecida pelo irmão Moacir, o saudoso escritor e jornalista, pode ter sido sua a ideia de enriquecer o texto com a reprodução de um retrato a óleo em que a Maria Francisca exibe viçosa barba, dessas a que, por permitirem o trânsito dos insetos anopluros de uma orelha a outra, se dava também o nome de “passa-piolho”. Não teve a criatura pejo algum em se mostrar assim ante os pincéis de um artista europeu, se não me engano Claude-Joseph Barandier, integrante da missão artística francesa que, em mais de um sentido, pintou no Brasil no século 19. 

A Maria Francisca não primava pela beleza, mas não chegava a ser um caso de feiura, e muito menos era um tribufu, como se diz em Minas. Não seria justo pendurá-la na galeria das moças que, sendo de Vassouras, sejam também de vassoura, dessas de voar, não de varrer. Vá ao livro, veja a foto e me diga se a parenta não tinha seus encantos, alguns deles, quem sabe, camuflados sob um vestido verde de decote largo e raso. E a quem puser malícia posso adiantar que, excetuada a barba, nada indica que a prima precisasse acomodar os pés em sapatos de numeração avantajada.

Esse foi, até agora, o achado mais graúdo a que me levou minha curiosidade genealógica. Sigo escarafunchando o baú familiar. Algum tempo atrás, pedi a um velho camarada de colégio, hoje sumidade da genética, que me submetesse ao chamado teste de ancestralidade genômica. A coleta de material no interior de minhas bochechas, com um prosaico cotonete, já me permitiu saber que sou 0,8% índio e outro tanto afrodescendente, como agora é de bom-tom dizer, já não sendo, pois, o caso de indagar, como na canção do Caetano, se eu sou neguinha.

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Quanto os restantes 98,4% do blend genético que constitui minha pessoa, bem, este é assunto que requer um espaço no momento esgotado. Estou disposto a retomar o papo na próxima rodada.

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