PUBLICIDADE

PURGATÓRIO DA BELEZA E DO CAOS

Num inferninho da Lapa carioca, sob ruídos de todo tipo, as pessoas se perguntam: aqui é mesmo o Rio de Janeiro?

Por BOLÍVAR TORRES
Atualização:

"Tem um guitarrista que não toca guitarra e um baterista que não toca bateria." É assim que Fernando Torres tenta definir a Duplexx, a banda que convidou para tocar em sua mistura de loja de discos, estúdio e casa de shows, a Plano B. O grupo em questão são os cariocas Leo Monteiro e Bartolo.Bartolo e Monteiro também participam da badalada Orquestra Imperial. Quando gravam no estúdio com artistas do mainstream, se limitam à música tradicional, 'mais harmônica', que o 'patrão manda'. Mas graças ao seu projeto autoral, no entanto, os dois acham espaço para explorar um som fora do convencional, que inclui improvisação livre sobre ruídos eletrônicos, samplers de insetos e outros sons da natureza, como o gás boliviano. Algo que costumam chamar, contra a sua própria vontade, de 'música experimental'.Fora do circuito da imprensa e das grandes casas de show, este estilo musical marginalizado, capaz de ferir os ouvidos dos não iniciados, encontrou no palco do Plano B um tratamento de luxo. Localizado no andar térreo de um prédio residencial da Lapa, o espaço de 15 metros quadrados, que serve de loja de vinis raros de dia e casa de shows à noite, vem acolhendo, nos últimos sete anos, os principais expoentes da cena underground carioca. Longe do clichê da cidade do samba, apresenta um outro Rio de Janeiro, o dos barulhos esquisitos e da música concreta."Toda essa efervescência que existe hoje no Rio é um pouco nossa culpa, minha e da minha sócia", explica Torres, referindo-se à sua esposa Fátima Lopes. "Desde que começamos a receber shows, o Plano B virou um ponto de encontro."Lá pelas 20h, a casa continua vazia. Monteiro e Bartolo ainda preparam o 'palco' e passam o som. Logo ao lado deles, uma gata malhada, a doce Ninotchka, dorme em cima dos discos que estão à venda. Perguntado sobre o que irá tocar, Monteiro diz: "Improvisação livre, entende?"Os frequentadores habituais vão chegando. Todos se conhecem e são, na maioria, artistas ligados à cena alternativa, da música ou das artes plástica - muitos, inclusive, já tocaram ou fizeram performances por lá. Enquanto não começa o show, agrupam-se do lado de fora, bebendo latinhas de cerveja.Uma das figuras é a carioca Liz Christine, que já lançou álbuns por gravadoras alemãs e japonesas. Sua carreira começou em 2008, quando foi revelada pelo projeto Outro Rio, idealizado pelo próprio Fernando Torres. "Tímida" (o termo é dela), diz que sempre morreu de medo de se apresentar ao vivo e que sua música é "bem noise". Consiste essencialmente de colagens de sons da natureza, gatos miando, diálogos de filmes de Buñuel e Truffaut e declamações de suas próprias poesias . "Só comecei a usar minha voz mais tarde, por causa da timidez. Mas não tem nada cantado. Eu trabalho em cima de textos."O carioca Barrão, do coletivo Chelpa Ferro, que mistura música e artes plásticas, chega trazendo dois artistas parisienses, Damien McDonald e Maya Palma. Morando há um mês no Brasil, queriam visitar um espaço conhecido por promover interações. Algumas semanas antes, em uma dessas experiências, Fernando Torres e o artista plástico Jorge Duarte haviam apresentado o que eles chamam de "música esculpida". Duarte, com uma britadeira, furava uma caixa iluminada em seu interior, enquanto Torres fazia improvisações eletrônicas sobre o ruído. A caixa preta, com seus furos de luz, é hoje um dos objetos decorativos mais bonitos do Plano B.Cerveja na mão, Barrão tenta agora explicar aos franceses a junção intraduzível ('oseille' e 'fer'?) que nomeia o seu coletivo. Logo depois aparece Fátima, a coproprietária da loja, preocupada com uma quebra de protocolo no show de hoje - o uso de bateria, instrumento proibido depois de um acordo com os moradores do prédio. "Eu não tenho nada que ver com isso. O que vocês vão assistir hoje é um ato terrorista", ela brinca. "Tenho muita preocupação com a política de boa vizinhança. Como já disse o Hermano Vianna, o Plano B só sai nas páginas culturais, nunca nas policiais." Já passa das dez da noite. Com mais de uma hora de atraso, a Duplexx inicia sua barulheira. O público se aglomera dentro da loja, atento às experimentações da banda. Bartolo começa tirando ruídos agudos de um sintetizador modular analógico, que progressivamente vai dialogando com os aparelhos eletrônicos de Monteiro - octapad, electribe e outros instrumentos modificados por circuit bending. Tudo desafina voluntariamente. Na plateia, o músico Felipe Zenicola, que costuma tocar em outro evento semanal importante da cena experimental do Rio, o Áudio Rebel, lembra que este tipo de improvisação livre é característico da cena carioca."Os músicos costumam me dizer que o Rio virou um polo, que aqui as coisas acontecem, especialmente no que diz respeito à improvisação", diz. "Mas é uma questão complicada: nenhuma improvisação é totalmente livre. Quando você sai tocando em cima de uma proposta, já não é mais livre."As experimentações da Duplexx evoluem durante quase uma hora, mas o público, num entra e sai constante, se dispersa. "Este tipo de música tem que ter no máximo 20 minutos, senão as pessoas não aguentam", observa Fátima, que adianta seus planos. "Vou ter que cobrir as janelas da loja. Chamei um artista italiano que faz performances nu e fica se cortando. Será a apresentação mais ousada que já fizemos por aqui."

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.