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Precisamos falar de saias

Usei saia e vestido algumas vezes. Até minissaia. Adorei. Era anos 1970. Havia uma atmosfera com androginia por todo lado. Gregos e romanos conquistaram impérios usando saias. Índios brasileiros usam há milênios. É prático. É útil. É sexy. Era eu um homoflexível? Não. Gostava de saias.

colunista convidado
Por Marcelo Rubens Paiva
Atualização:

Usei uma saia hippie de uma amiga hippie durante algum tempo. Saía com a amiga pelas ruas de Campinas, abraçado. Garotada ria. Se fazia alguma indelicadeza, eu mostrava a bunda. Usava um vestidão de uma namorada pela casa dela. Dormia e acordava nele. Era tão confortável.

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Passei um carnaval de minissaia, meia, maquiado, pelas ruas de São João da Boa Vista, cidade na fronteira da tradicional Minas Gerais. Não precisava de peruca, já que meu cabelo era um cabelão. Desfilava nos blocos. Era paquerado pelos agromachões da cidade e devolvia beijos. E ríamos todos...

Ninguém me xingava de afeminado, afrescalhado. O mundo estava em ebulição. Cantores de rock eram cabeludos, tinham voz fina, maquiavam-se. Não era fatia de um Movimento Gay. O nome mais simples: provocação. Aliás, nem se usava esta denominação. Nem LGTB. Movimento Gay começou depois, união necessária para combater a violência policial.

Nem se dividiam pessoas que tinham experiências e não se reprimiam de bissexuais. “Sem tesão não há solução”, propagava nosso guru, Roberto Freire. O tesão não é por uma coisa só, mas por tudo. E vale tudo. Muitos da minha geração passaram a se interessar pelos armários das irmãs em busca de blusas coloridas, colares loucos, batas, baby look. Como elas passaram a afanar nossas camisas sociais, gravatas e ternos.

Homens dos anos 1970 usavam tamancos, bolsas, calças apertadas, camisas brilhantes e até decotes. Estavam nas discotecas. Ou eram do glam rock (de Glamour Rock), ou glitter. Usavam cílios postiços, purpurina, batons, lantejoulas, paetê, salto alto, saias. A maquiagem pesada se destacava. De Alice Cooper e David Bowie, dos tropicalistas a punks, como New York Dolls (grupo punk que ainda hoje pinta as unhas). 

Ninguém se perguntava se o hit punk de Iggy Pop era uma transa gay: “So messed up I want you here in my room. Now we’re gonna be Face-to-face. And I’ll lay right down in my favorite place. And now I wanna be your dog” (estou tão doidão, quero você aqui no meu quarto, primeiro a gente fica cara a cara, aí vou me deitar na minha posição favorita, e agora quero ser seu cachorro).

A banda número um nas vendas no Brasil era Secos & Molhados. E pouco nos importávamos de que gênero eram. Meus amigos da faculdade se beijavam dando bitocas na boca. Sem distinção de gênero. Parou com a chegada da aids, que ninguém sabia o que era exatamente. Um dos primeiros a morrer da doença foi o nosso professor Roberto Galizia.

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A Era Reagan freou as loucuras de duas décadas e os avanços comportamentais. Com a aids como aliada, a reação do tele-evangelismo, e guerra contra as drogas, para desviar o foco, a caretice reinou. Roupas e carros perderam as cores. 

A indústria farmacêutica passou a oferecer na rede das drogas lícitas as soluções para crises pessoais e a serotonina, que a vida estressante e alienante do mercado corporativo necessita. O consumo passou a ser o prazer mais mobilizador. Através das marcas, a pessoa passou a se expressar e a encontrar sua comunidade. Os espaços alternativos abriram franquias em shoppings. Segurança e conforto é o lema a ser seguido. A utopia está no dinheiro. 

Uma revolução rola nas escolas. Nasce uma geração que embaralha a noção de gênero. Meninas jogam bola com meninos. Garotos usam saia. Menina, shorts. Esqueça os mofados papéis sociais. Esqueça as boas normas da tradicional família. Esqueça o ideal, o certo, o aceitável. 

No Brasil e no mundo, nasce uma geração que rompeu os limites sexuais e as definições pragmáticas de preferências. Beijaços, saiaços ou saiatos. A revolução começou e não veio de graça. Começou com protestos de alunos. Como uma escola, que deve transmitir tolerância, respeito às diferenças, democratização dos valores, pode designar o que se deve ou não vestir?

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Começou há tempos nas escolas alternativas. Chegou agora ao mais tradicional de todos, ao Colégio Pedro II, fundado em 1837, e de uma forma burocrática, a edição de uma portaria: alunos poderão escolher se vêm de saia, shorts ou bermuda, independentemente do gênero. 

De acordo com o informe publicado no site da escola, “a medida segue parâmetros da Resolução n.º 12 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT)”. Pretende-se manter “a igualdade, a identidade e a diversidade” do corpo discente.

O reitor do colégio, Oscar Halac, esclarece que deve contribuir para que não haja sofrimento desnecessário entre estudantes transexuais. E escreveu um texto que entra pra história: 

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“A escola pública precisa sinalizar que é hora de parar de odiar por odiar. Propositalmente, deixa-se a critério da identidade de gênero de cada um a escolha do uniforme que lhe couber. Estamos cumprindo a determinação de uma resolução vigente e procuramos de alguma maneira contribuir para que não haja sofrimento desnecessário entre aqueles que se colocam com uma identidade de gênero diferente daquela que a sociedade determina. Creio que a escola não deve estar desvinculada de seu tempo e momento histórico. A tradição não importa em anacronia, mas pode e deve significar nossa capacidade de evoluir e de inovar”.

A escola já foi mais longe. Há meses, na chamada, adota o nome que o aluno quer ser chamado socialmente. Parabéns, corpo docente e discente do Pedro II. Queria estar com vocês. Não usaria cílios, maquiagem, salto alto, anágua, sutiã, presilhas no cabelo, brincos. Mas minha avó tinha um chinelão, um vestido de algodão de abotoar na frente e um colar de pérola bem confortáveis.

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