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Lei de proteção de dados ameaça o vale-tudo do Vale do Silício

Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Nada como a abertura da sociedade norte-americana para ajudar um forasteiro a escancarar tentativas de fechar portas à liberdade individual. Não falo da liberdade de ir e vir. Falo de outra liberdade ameaçada, aquela que é difícil defender no cotidiano, seja na leitura de longos e inescrutáveis termos de serviço em letras minúsculas, seja nos obstáculos para o consumidor manter controle de sua privacidade, uma vez que pisa no labirinto de um conglomerado digital.

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O forasteiro que saboreia uma vitória sobre o Vale do Silício é o austríaco Max Schrems, de 28 anos, aluno de PhD da Universidade de Viena. Há cinco anos, ele estava num programa de intercâmbio na Universidade de Santa Clara, na Califórnia, quando advogados de empresas de tecnologia do Vale, um deles do Facebook, foram convidados para uma aula. Schrems recordou o tom da conversa, em entrevista ao programa On the Media, da rádio pública nova-iorquina: “Basicamente eles disseram, os europeus são fofinhos com sua mania de privacidade mas, se a gente for cumprir regras, não dá para fazer nada. Então, ignoramos as regras”.

A bravata pode se mostrar uma das caras da história corporativa dos EUA. Schrems se sentiu provocado e foi pesquisar como o Facebook arquivava sua informação. Por uma confessada e hilariante “falta de comunicação”, o Facebook enviou a Schrems um CD com 1200 páginas das quais 300, de acordo com os termos de serviço, já deviam ter sido apagadas. Schrems se queixou primeiro à autoridade irlandesa encarregada de proteção de dados.

Em 2013, Edward Snowden forneceu ao austríaco mais munição ao revelar que a NSA, a agência de segurança nacional americana, invadia dados privados de cidadãos europeus e a segunda queixa foi parar no Tribunal de Justiça da União Europeia. No dia 6 passado, o Tribunal basicamente anulou o acordo de transferência de dados em vigor desde o ano 2000, conhecido como Porto Seguro, ao concluir que o direito à privacidade dos europeus estava, de fato, sendo violado. O acordo era a base para cerca de 4500 empresas norte-americanas que lidam com dados operarem dentro das fronteiras da União Europeia. Se o cidadão é registrado num website na Áustria mas seus dados privados, sua história online são transferidos e arquivados ilegalmente num servidor nos Estados Unidos, como é mesmo que se chama isto? Hum, violação de soberania? A maré jurídica está virando, não importa a fofura dos internautas europeus. 

Imaginem o contrário. Eleitores nos Estados Unidos descobrem que seu governo cedeu à União Europeia o direito de tratar sua informação privada como a casa da sogra. Estariam em pé de guerra e as ações legais iam pular mais rápido que pipoca em forno micro-ondas.

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Na entrevista à rádio, Schrems destacou a diferença na visão de democracia dos dois lados do Atlântico: na Europa, arquivar informação sem consentimento já é uma violação de privacidade. Nos EUA, o problema é abusar da informação. Concordo com seu argumento de que, se o cidadão espera ser monitorado, restringe o comportamento e a expressão. Os europeus são mais enfáticos em considerar o direito à privacidade digital tão importante quanto o direito à liberdade de expressão.

E vem aí a GDPR (General Data Protection Regulation), uma lei única para regular a proteção de dados em toda a União Europeia, que deve entrar em vigor até o começo do ano que vem. Ao contrário das regras que os advogados do Vale do Silício aconselhavam ignorar, é possível, na prática, fazer cumprir as novas leis. E não há nada de fofinho na munição letal do GDPR: em caso de violação, a multa pode chegar a 5% da receita global de uma empresa.

O ecossistema digital não é mais o vale tudo da década de 1990. Seria irônico ver o superpoder da tecnologia transformadora da economia global ser reduzido a espectador do movimento civilizatório na Internet que ele mesmo criou.

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