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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Pensando ao Norte

Há uma vastidão emocionante e solene no rio e na mata. Aqui somos convidados de uma natureza onipresente e soberana

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Atualização:

Estou em plena selva amazônica. O projeto de reunir autores em um barco para uma viagem cultural é muito original. Impossível não ficar emocionado na exuberância de vida e de verde ao meu redor. As companhias são divertidas e inteligentes. O Rio Negro é algo quase mágico. 

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O Brasil é um país continental com realidades distintas. Há algo curioso na nossa vastidão. A maior região do Brasil, a Norte, é a mais ignorada nos debates do Sul e Sudeste. O Grão-Pará, como já foi dito, é o país que morreu para o Brasil nascer. Ali havia um Estado à parte, mais próximo da Europa que a porção meridional. Foi palco da última visita do Santo Ofício à colônia, em plena era de Pombal. Foi sede de um vasto projeto de conquista religiosa com centenas de missões de jesuítas e capuchinhos, dentre outros. A geopolítica portuguesa ao Sul foi derrotada, pois não garantiu a posse de uma margem do Rio da Prata. Pelo contrário, houve uma vitória setentrional, assegurando os dois lados do Amazonas no encontro com o Atlântico. 

O apogeu da borracha transformou a região. Dele restam obras como o Teatro Amazonas e seu tom rosa imponente no largo de São Sebastião. A borracha provocou uma disputa com a Bolívia que resultou no Acre. Do período, brotam histórias verdadeiras ou não de uma elite gomífera mandando lavar roupas em Paris. Restam também milhares de seringueiros pobres ou explorados, como os nordestinos que fizeram parte da Batalha da Borracha mais tarde, em plena 2ª. Guerra Mundial. 

É no Norte que ocorre a maior festa católica do Brasil, o Círio de Nazaré. Foi no Norte que ocorreu uma das mais fortes revoltas populares do país, a Cabanagem. Foi de Belém que veio parte da questão religiosa do Império, levando D. Antônio de Macedo Costa a ser preso e a desgastar profundamente o trono de Pedro II. O titular de Belém acabou se tornando o primaz do Brasil, em Salvador.  Flui água e talento pelo Amazonas. O manauara Milton Hatoum (1952) é dono de uma prosa muito inovadora e especial. Minha leitura de Dois Irmãos foi amor à primeira vista. As obras como Cinzas do Norte e A Noite da Espera foram lidas com avidez. O Brasil se encanta com Malvino Salvador atuando nas novelas e, quase sempre, ignora que ele é manauara da gema. 

A Amazônia está na base do país. Da floresta equatorial, partiram grandes grupos indígenas que ocupariam o litoral brasileiro. Os indígenas que Cabral encontrou na costa recém descoberta, provavelmente, descendiam dos nômades que desceram o território. Ainda existe forte presença indígena na região amazônica, um verdadeiro milagre considerando a história do nosso país. 

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Também no Norte está uma fronteira complexa, especialmente agora que o sofrido povo venezuelano foge da fome e do arbítrio. Imigrantes desesperados, contrabando, drogas e até guerrilhas são um desafio humanitário e da estratégia brasileira. Os riscos da região tornam os postos do Exército brasileiro a esperança de muitos povos da Amazônia. Nossos soldados são vitais para muita gente na região. É possível supor que, no futuro, teremos cada vez menos Rudolfs do Sul e mais Ubiratans nas nossas tropas, com a ascensão de candidatos nortistas em detrimento da tradição de arregimentar e graduar soldados meridionais. 

Estive em Macapá uma única vez, encantado com a fortaleza de São José e a simpatia com que me receberam. Sonho conhecer, um dia, o monte Roraima, uma paisagem absolutamente original do teto do país. Necessito passar mais tempo em Palmas, Rio Branco e Porto Velho. Minhas visitas foram rápidas para absorver tantas coisas novas. Sozinha, a região Norte representa mais de 45 % do território nacional. Lá estão os dois maiores estados do nosso país, Amazonas e Pará. Dez dos maiores municípios brasileiros concentram-se lá. O maior de todos, Atalaia do Norte (Am) possui área próxima a 76.355 km². Querem referências? A Suíça tem pouco mais de 41 mil km². Israel possui cerca de 20 mil metros quadrados. Caberiam mais de três Sergipes em Atalaia do Norte. Os números da Amazônia são superlativos. 

Com quase três mil metros, o Pico da Neblina é o ponto mais próximo do céu em território nacional. Como a água é a grande riqueza do planeta no século 21, temos de lembrar que a maior bacia hidrográfica da Terra está na região Norte. Minha geração ainda lembra do programa do repórter Amaral Neto, especialmente ao descrever a pororoca. Também pertence à memória de pessoas maduras a Transamazônica, que rasga o então chamado “inferno verde”. Pouco resta do ufanismo da década de 1970. Ainda é uma região pouco povoada. Os dois estados com maiores populações, Amazonas e Pará, somados, quase representam o mesmo da cidade de São Paulo. 

Os saraus literários, aqui no Rio Negro, são divertidos. Viramos Fitzcarraldos (o filme de Herzog, 1982) menos obsessivos. Altas ideias deslizando sobre margens e tomadas de sons da floresta. Há uma vastidão emocionante e solene no rio e na mata. Aqui somos convidados de uma natureza onipresente e soberana. O tempo é outro e o ar é distinto. Para quem mora em São Paulo, é um passaporte para outro planeta. O Brasil foi “descoberto” em 1500. A Amazônia é a área que falta descobrir. Boa semana para todos nós. 

Opinião por Leandro Karnal
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