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Pássaro sem voo

Ter dentro de si um mundo de arte e não conseguir expressá-la - este o drama de Jayme Ovalle

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Imagine uma pessoa inteligente e sensível, dotada em especial para a poesia e a música - e, ao mesmo tempo, incapaz de pôr para fora o mundo de arte que traz dentro de si. Este foi o drama de Jayme Ovalle, inspirador de poemas de Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes e outros grandes, personagem de Fernando Sabino no romance O Encontro Marcado, onde transparece nos traços da fascinante figura do velho Germano. Parecia destinado a deixar obra forte e duradoura, mas ao morrer, em 1955, aos 61 anos de idade, dele não restou, para além da legenda, mais que 33 canções, a maioria delas logo esquecidas, e uns poucos poemas exangues, tão frouxos que nem mesmo Bandeira, o maior amigo, considerou dignos de inclusão na sua complacente Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos. Penso em Ovalle como ilustração radical de um tipo de gente que costuma não faltar a nenhuma fornada de escritores e artistas: seres talentosos de quem seria natural esperar frutos de qualidade, e dos quais, no entanto, não ficará mais que um brilho de salão ou roda de café.  Assim foi também, na geração de Ovalle, Evandro Pequeno, músico, jornalista e tradutor que esfarinhou no convívio uma enormidade de saber, humor e graça, faíscas que não teriam chegado a nós se amigos como Rachel de Queiroz não as tivessem retido em seus escritos. No desalentador Brasil de hoje, que talvez levasse Otto Lara Resende a concretizar um anunciado projeto de trancar matrícula de brasileiro, volta e meia me lembro de como reagia Evandro Pequeno ante descalabros políticos menos repulsivos que os atuais: “Não tenho nada com isso”, dava de ombros, “sou um sueco em trânsito”. O caso de um perdulário do talento como Evandro Pequeno pode ter frustrado quem estava em torno; ele mesmo, porém, aparentemente não se agoniava, pois não há notícia de que tenha se empenhado em edificar uma obra. Gastava-se, e isso lhe bastava. Bem diferente da tragédia de Ovalle, pois este sim, sonhava espraiar-se em criações que fossem longe no tempo e no espaço. Os amigos, a começar por Bandeira, chegaram a crer que seria possível. A Mário de Andrade, porém, já no primeiro encontro, em 1926, pareceu nítido o destino do jovem paraense: talentoso, mas carente de formação específica, Jayme Ovalle jamais iria além de faíscas - algumas das quais só se salvariam porque houve nas proximidades quem as recolhesse, à maneira da embevecida criatura que, nos versos de Vitrines, de Chico Buarque, recolhe a poesia que a descuidada moça entorna no chão. Mário sabia o óbvio: que não basta ser artista quando não se tem os meios para formalizar a arte represada na mente e no coração. No caso de Ovalle, a explicação pode estar na formação desde o início deficiente de um menino que os padres do colégio em Belém devolveram aos pais, sugerindo que mandassem outro. Em alguns momentos, já homem feito, bem que ele tentou constituir a base que não teve, tomando aulas de música. Na temporada de 4 anos que em seguida passou em Londres, a partir de 1933, contratou um músico brasileiro para consolidar suas criações em partituras que Manuel Bandeira se empenharia em difundir. Pouco rendeu o esforço. Da minguada produção musical de Ovalle, raros são os que se lembram hoje de algo além das três parcerias com Bandeira: Modinha, Berimbau e, sobretudo, Azulão, conhecida e gravada em todo o mundo. Mesmo neste caso, uma faísca, com apenas 16 compassos. Faltava fôlego a uma criatura que, no depoimento de Augusto Frederico Schmidt, nem sempre conseguia, numa simples conversa, chegar ao final da frase. Uma de suas criações mais conhecidas, engenhosa classificação dos seres humanos em 5 categorias, não existiria se naquela mesa de café não estivesse Manuel Bandeira, que recolheu, batizou e publicou a célebre Nova Gnomonia.  Como poeta, Ovalle sentia em si uma poesia tão forte que precisaria chegar ao máximo de gente, e para isso encasquetou escrever em inglês - língua que jamais chegou a dominar, mesmo tendo vivido aqueles 4 anos em Londres e outros tantos em Nova York. Numa cidade e na outra, tentou passar a sucessivas namoradas, em seu já precário português, aquilo que lhe parecia urgente pôr em versos. Da Inglaterra trouxe as 99 laudas de The Foolish Bird, o pássaro bobo, poema que Bandeira, não sem boas razões, se limitou a guardar em seu arquivo. De Nova York, de onde trouxe a jovem escritora com quem se casaria, Virginia Pechkam, Ovalle chegou certo de que daquela vez, sim, com a ajuda da companheira, The Foolish Bird levantaria voo. A certa altura, tendo perdido a esperança, cedeu originais e ideias a Virginia, incumbindo-a de levar adiante o livro, agora como obra sua. Mas que não o fizesse imediatamente, pediu, porque ver sua obra realizada por outra pessoa poderia liquidá-lo antes da hora. “Reescrevi umas dez vezes, está quase pronto”, me contou Virginia numa das ocasiões em que a entrevistei na Califórnia para a biografia O Santo Sujo. Teve o cuidado, explicou, de não alterar ideias originais de Ovalle, “apenas deixei que elas crescessem”. Em 1992, deu por concluídas as 40 páginas de Brazil Genesis, das quais ganhei cópia. Dezoito anos depois da morte de Virginia Peckham, em 2000, segue inédito o poema que, credita ela numa introdução, “Jayme Ovalle teria escrito, se ele fosse capaz de fazê-lo, em seu português nativo ou no seu inglês de empréstimo”.

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