Para Drummond, reflexão é condição para chegar à poesia

Crítico analisa a obra do poeta, que chama de "figura emblemática da poesia moderna no Brasil"

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Por Davi Arrigucci Jr.
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Para todos nós, Carlos Drummond de Andrade é a figura emblemática da poesia moderna no Brasil. Não creio que Manuel Bandeira seja, como muitos crêem, um poeta menor e inferior a Drummond, mas Bandeira é o grande poeta da passagem para a modernidade, enquanto Drummond é o poeta central da experiência moderna brasileira. Ao considerar este fato, dei com o seguinte ponto que me pareceu fundamental: tudo na obra desse poeta não acontece senão por conflito. Veja fotos e ouça poemas de Drummond Veja também: A lição de Drummond, por Moacir Amâncio Filme do neto Pedro mostra dia-a-dia do poeta Ex-genro e tradutor lembra a amizade e trabalho Realmente, tudo é conflitivo em Drummond. E conflitivo desde o começo de sua carreira. Ele experimentou contradições e dificuldades desde o início para forjar o denso lirismo meditativo que o caracteriza. Quando consideramos seus grandes poemas, logo nos damos conta do atrito dos elementos contraditórios e da densidade reflexiva de sua lírica. Até a figura humana do poeta, sua atitude característica, parece estar associada a essa densidade da reflexão: o ser e o dizer ensimesmado. É raro que uma foto sua escape ao ar pensativo com que nos habituamos a vê-lo. E desde o princípio, estamos diante desse traço decisivo do estilo ou do modo de ser da obra: a exigência de uma mediação reflexiva para se chegar à poesia. Um caminho atravessado por dificuldades. Se compararmos com Manuel Bandeira, de imediato se notará a diferença: Bandeira dá a impressão da mais fluente naturalidade. O próprio Drummond chamou nossa atenção, porém, para a "fábrica altamente engenhosa" de Bandeira, como está dito em seus Passeios na Ilha, percebendo com precisão o quanto havia de cuidadosa construção naquela aparente espontaneidade. A primeira impressão que nos dá Bandeira é a do poeta "ingênuo", na acepção que Friedrich Schiller empregou o termo no seu ensaio dos fins do século 18: Poesia ingênua e sentimental. "Ingênuo" seria o poeta que procede instintivamente, conforme a natureza, enquanto que "sentimental" - este seria o caso de Drummond - seria o poeta reflexivo, ou antes, o poeta que tendo se perdido da natureza busca, por meio da reflexão, restabelecer a sensibilidade "ingênua". Com efeito, para Drummond a naturalidade parece constituir um problema, e a poesia, o objeto de uma procura dificultosa. Assim, a questão fundamental é esta poesia travada pela dificuldade que parece ser a sina drummondiana. Procura da Poesia é não apenas um dos melhores poemas de A Rosa do Povo, mas o traçado do esforço que caracteriza sua aproximação ao poético. E basta lembrar outros poemas na mesma direção, como Consideração do Poema, Oficina Irritada ou O Lutador, para sentir o peso dessa dificuldade e quanto a mediação do esforço reflexivo é uma exigência íntima para o poeta. Se dermos alguma folga aos conceitos de Schiller, Drummond será nosso poeta moderno e "sentimental". No caso de Bandeira, a criação poética se mostra como natureza prolongada e a crença na inspiração, na súbita manifestação do poético que constitui para ele o alumbramento, confirma o modo de ser "ingênuo". No entanto, sabemos que o alumbramento bandeiriano - essa linda palavra parece trazer consigo, pela trama dos sons, ecos simbolistas, entremeando luz à sombra e levando a "iluminação", a confundir-se com o mistério - é uma noção complexa. Exige do poeta uma atitude de "apaixonada escuta" e só se dá quando ela poesia quer, mas tampouco basta para concretizar em palavras a inspiração, uma vez que esta depende também dos "pequeninos nadas" da linguagem, que podem estropiar um verso ou uma imagem. Um poema pode ser, então, o resultado de um esforço construtivo de anos a fio: Bandeira gostava de lembrar a história de sua sofrida estatuazinha de gesso, renitente ao lacre verbal com que buscava encerrá-la num verso. E assim o Itinerário de Pasárgada é o caminho difícil da aproximação à poesia e a história da aprendizagem do ofício de poeta enquanto artista da palavra. Bandeira que acreditava na importância da inspiração até para atravessar uma rua, não tinha, porém, nada de ingênuo. O caso de Drummond, porém, é mais complicado. Sua concepção do poético exige a reflexão como mediação necessária para o encontro da poesia. Ora, essa modalidade de pensamento que é a reflexão tem uma origem romântica. Os pré-românticos alemães é que desenvolveram esse tipo de pensamento reflexivo que nasce como uma fantasia do Eu sobre o Eu, como uma forma de pensar sobre o pensar. É um pensar sem-fim que lembra o sonho, mediante o qual fundaram suas principais concepções. O dobrar-se do Eu sobre si mesmo, tal como o leitor se depara na obra drummondiana parece evocar, então, a meditação romântica centrada sobre si mesma, sobre o próprio coração onde se acha o inalcançável da reflexão. A fórmula "O meu coração é maior que o mundo"exprime essa tendência do pensamento para o infinito e o que não se pode alcançar, a vastidão impreenchível do coração em que se perde o pensamento. Na verdade, a reflexão se torna, para Drummond, a condição para chegar à poesia e, a uma só vez, a dificuldade que o impede de alcançá-la. Este é o paradoxo central de que parte sua obra, a contradição que está na raiz de seu percurso poético e que ele vive dramaticamente desde o princípio e não apenas, como se poderia supor, no tempo da madureza e dos densos poemas meditativos, à maneira dos Versos à Boca da Noite, um dos mais belos poemas que escreveu. Neste e em tantos outros, podemos sentir a presença viva da tradição da lírica meditativa do Romantismo que, nos países de língua inglesa deu a linhagem que de Shelley, Keats e Swinburne, vem até Yeats e alguns dos modernos, como o norte-americano Wallace Stevens. Em Drummond sentimos a força do pensamento como em nenhum outro poeta nosso; e desde o começo, ele experimenta dramaticamente as contradições que enfrenta: seu lirismo nunca é puro, mas, sem prejuízo de sua alta qualidade, sempre mesclado de drama e pensamento. Alguns dos melhores críticos do poeta, como Antonio Candido, autor do notável ensaio Inquietudes na Poesia de Drummond, acham que a obra inicial, marcada pelo humor modernista, em linguagem anticonvencional e irreverente, se organiza em torno do fato. No meu modo de entender, porém, nunca se trata propriamente do fato direto, mas do fato envolvido pela reflexão; há sempre mediação do pensamento, e o fato surge interiorizado: é a repercussão do mundo na interioridade do Eu, no movimento característico da reflexão, do pensar sobre o pensar, mesmo nos poemas-piada. Esse pensar sobre o pensar não tende apenas a criar uma infinitude da progressão no tempo; ele é também um infinito da conexão. Benjamin, que estudou detidamente a reflexão dos românticos em suas relações com o pensamento de Fichte, chamou a atenção para esse aspecto da questão, tal como aparece em Novalis, para quem pensar é conectar infinitamente... O chiste, o Witz dos pré-românticos alemães, é uma forma de conexão, de articulação de elementos díspares ou contraditórios. E a essa tradição pode ser conectado também o poema-piada modernista de Drummond. No caso de nosso poeta, trata-se do diálogo com a herança romântica baseado numa atitude profundamente anti-romântica. Drummond é o primeiro a desconfiar de qualquer sentimento; é o primeiro a criticar e ironizar todo sentimentalismo, no sentido vulgar e lacrimoso do termo. Em Sentimental, famoso poemeto de Alguma Poesia - trata-se da anedota do namorado que tenta escrever o nome da amada com letras de macarrão e é impedido pela voz da família mineira: "- Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!" - nota-se como os fatos se articulam com a reflexão nas complicadas dobras em que se envolve o sentimento na busca de expressão. O poema objetiva na cena figurada pelo Eu a situação exemplar de um idílio constrangido que serve, por sua vez, de mediação reflexiva para a dificuldade de exprimir o próprio sentimento, a confissão amorosa pura e simples. Vê-se como o poeta se perdeu da naturalidade, e a busca do natural deve ser mediada pela reflexão. Os fatos servem ao pensamento e só por meio deste se exprime o sentimento, transformado em sentimento refletido. O "poema-piada", designação ao que parece criada por Sérgio Milliet, facilita a compreensão do sentido humorístico reinante entre os modernistas, mas é muito diferente em cada um dos poetas, como se observa em Oswald de Andrade, Manuel Bandeira ou Murilo Mendes. Nas mãos de Drummond está realmente perto do espírito do chiste pelo casamento de comicidade com seriedade, de graça acintosa com severa gravidade, envolvendo a ambigüidade de tom própria da conexão dos elementos opostos. Raramente se observa a redução de seus poemetos do início ao mero anedótico: a articulação de elementos divergentes ou contrastantes conduz à ressonância dos fatos na alma, sem se esgotar na pura piada. Assim, por exemplo, num poema mínimo como Cota Zero ("Stop./ A vida parou/ ou foi o automóvel?"), a atitude de avaliação implicada no título e o tom interrogativo com que ela se desenvolve, no qual contrastam perspectivas diversas sobre coisas muito diferentes, põem em movimento reflexivo os ritmos opostos da província e da cidade grande, da existência arrastada e da máquina, do atraso e do moderno, mas também da cota de vida e de morte que um ícone da vida moderna como o automóvel introduz na avaliação da própria existência. Mínimo, mas complexo. O chiste drummondiano é uma espécie de engenho poético associativo, que dá lugar à ironia porque permite uma avaliação refletida das coisas discrepantes que nele se juntam e se chocam, como num relâmpago iluminador. Embora o termo chiste não seja o ideal - ele não recobre exatamente o campo semântico do Witz alemão, ou do wit dos ingleses nem do mot d’esprit dos franceses - parece melhor, no entanto, do que o poema-piada. Em Drummond, ele constitui também um meio de articulação, ou seja, uma forma de sintaxe, através da qual a reflexão conecta a multiplicidade na unidade. É o que se pode constatar pela leitura analítica do Poema de Sete Faces, que abre seu universo lírico, sob o espírito do chiste. Como vários dos grandes poemas de Drummond, este já foi muito citado e se incorporou à experiência banal do leitor, de modo que perdeu muito do poder de surpresa. É preciso restituir-lhe a força originária, pela leitura renovada. W. H. Auden afirmou certa vez: "(...) every poem is rooted in imaginative awe." E, de fato, essa raiz que o poema tem na surpresa, sua capacidade de despertar nossa imaginação pelo assombro, é preciso escavá-la pela leitura, deixando-a à mostra. No caso do Poema de Sete Faces, trata-se de resgatar até a sua dificuldade: a complexidade das múltiplas faces que nele se articulam, mas que começam por nos levar à perplexidade. A cada uma das sete estrofes, temos uma face nova e surpreendente, sem que se perceba de imediato a coerência do conjunto. Há uma lógica interna, no entanto, que é preciso desentranhar. As sete estrofes são irregulares, assim como os versos, mas a irregularidade não é a do verso livre modernista, em que o poeta escapa aleatoriamente da contagem das sílabas, mas quase sempre para ajustá-lo, com base na entoação e nas pausas sintáticas, ao movimento do sentido, adequando o corte da linha à sentença. Aqui a discrepância não é muita e parece guardar ainda um senso da medida, com variações pequenas em torno das sete sílabas da redondilha maior. Irregulares, sem serem polimétricos ou completamente livres, mascaram a desordem, acompanhando as variações do assunto. Os mais discrepantes chamam a atenção, como este: Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Parece a combinação de um de nove sílabas com outro de sete, e nele se introduz o motivo fundamental do coração, ponto recorrente da interrogação reflexiva de onde se pode compreender as variações múltiplas e aparentemente aleatórias do assunto. Basta parafrasear um pouco para se ter uma idéia da descontinuidade ostensiva da matéria, mas o princípio é a retomada de um lugar-comum da tradição. Com efeito, na primeira estrofe, temos a cena do nascimento maldito do poeta, um tópico rodeado de ecos bíblicos e modernos, até o célebre: Vai, Carlos, ser gauche na vida, uma visão paródica, rebaixada e irônica dessa verdadeira expulsão do paraíso. O termo gauche, galicismo corrente ao tempo do Modernismo, evoca a visão baudelairiana do poeta, no famoso L’Albatros: "Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!" A figura desajeitada e fraca - uma estrofe inteira desenvolverá aqui o motivo da fraqueza e do abandono de Deus - resultante desse destronamento paródico, ressurge submetida à errância do desterro transcendental. Ocorre, pois, uma inversão realista de expectativas romanescas ou sublimes em torno da figura do poeta, enquanto ser bafejado pela inspiração divina, obrigado agora ao destino errante e dessacralizado na cidade moderna. Na segunda e na terceira estrofes se monta um cenário de cinema mudo, como numa comédia de Mack Sennett ou Carlitos, onde reinam os desejos frenéticos e desencontrados, às voltas com a idéia fixa das pernas. O motivo erótico rege a desordem urbana, tornando impossível toda harmonia: A tarde talvez fosse azul, /não houvesse tantos desejos. A intromissão de uma frase de elegância culta em meio à estripulia enumerativa das pernas demonstra como a mistura de níveis de estilo se tornou essencial à visão modernista de Drummond, certamente muito chocada pela novidade da cidade grande em contraste e confronto com as expectativas que deveria trazer seu olhar da província. Compacta nessa passagem, estará de fato contida toda a história de uma experiência pessoal e histórica, em seu trânsito de Itabira do Mato Dentro para Belo Horizonte e depois, o Rio de Janeiro: a mudança da província para a cidade grande, que longe de ser a Paris de Baudelaire, é apenas a metrópole brasileira em que o bonde tem ainda cara de novidade. Mas a mudança é grande para quem sai do interior e vem para a cidade desconhecida, pois para quem cumpre o percurso, o mundo é vasto e complexo. O tratamento realista e um tanto grotesco se ajusta a essa mistura discrepante da matéria, marcada pela fixação sexual, correspondendo concretamente a uma expansão da visão do mundo, de repente mudada pela chegada dos tempos modernos. O que aqui se dá é a abertura ao sentimento do mundo que se expandiu após a Primeira Grande Guerra. É essa a experiência histórica básica que a poesia inaugural de Drummond traz consigo como uma descoberta pessoal, como algo intensa e dramaticamente experimentado até as camadas profundas de sua subjetividade, tocada pelas mudanças do mundo vivido. A poesia dessa descoberta, a princípio grotescamente materialista, parece aumentar aos olhos de hoje, recoberta por uma pátina de pureza lírica então inesperada, como o próprio poeta soube captar mais tarde, recordando os filmes de Carlitos que viu mocinho, no Canto ao Homem do Povo Charlie Chaplin. O motivo das pernas contrasta com o tema meditativo do coração, introduzido pelo verso longo da terceira estrofe. Esse coração interrogativo pergunta pelo que não tem resposta. O homem sério que de repente aparece em meio à bagunça dos desejos, lembra a cara parada de outro cômico, Buster Keaton. Atrás de tudo, na defensiva, ele é uma espécie de raisonneur da comédia clássica, personagem que se interroga sobre o sentido das coisas e faz as vezes do autor, constituindo um notável contraponto à desabalada corrida atrás das pernas. Ele corresponde ao coração interrogativo, como uma outra face do Eu; por meio dele, percebe-se como o poema vai se armando como a imagem projetiva do sujeito, como a cena urbana em que pululam os desejos em desacordo é, como em Sentimental, um meio para a reflexão do Eu sobre o seu próprio sentimento de estar no mundo. O Poema de Sete Faces encarna o drama da expressão deste sentimento, cujo centro, o coração, fornece o caminho da reflexão e o princípio de coerência estrutural: por essa via, as múltiplas faces se articulam na unidade. As duas estrofes que restam, tão famosas, recolocam o motivo do coração, centro irradiador do poema. Para nossa surpresa, agora vemos que o coração não é apenas o lugar da interrogação meditativa em contraste com a errância exterior do desejo, mas também o lugar da vastidão, do desejo ilimitado. Chegamos ao ponto do ensimesmamento e da descoberta de uma vastidão interior maior que a exterior. Este último aspecto se torna perceptível pela medida do coração quando relacionado com o vasto mundo: mais vasto é meu coração. Esse sentimento da vastidão tem sido lido pela crítica como um sentimento egotista de onipotência do sujeito, arrebatado por uma ilusão juvenil de poder diante do mundo. Nesse sentido, creio, foi lido por Antonio Candido, no referido ensaio, em que formula as diversas equações entre o coração e o mundo ao longo da trajetória do poeta. Contudo, a coerência quanto à posição do sujeito, tal como apresentada desde o início do poema - o ser rebaixado, desajeitado e fraco que é o poeta, abandonado em seu exílio terreno - exige, ao contrário, que se considere a vastidão - lugar da falta que ama - a imagem do sentimento de não-poder do Eu, da impotência que é a base de sua visão irônica. O coração é o lugar do desejo impreenchível, do ilimitado, de que a vastidão é um símbolo. O lugar da unidade, o coração, é também o lugar da multiplicidade, da máxima dispersão, o lugar onde, refletido, o sentimento de estar no mundo é também sentimento de não-poder. Por isso, também é aí que se aguça o senso de insuficiência da linguagem na qual não se encontra a consonância adequada à expressão desse ilimitado que não se pode dizer: aquilo a que falta nome. Essa insuficiência é ironizada na referência à rima; ao explicitar um procedimento construtivo como esse, o poeta dá curso ao tratamento cômico, de paródia e farsa, que adota em passagens anteriores, buscando por meio do chiste a conexão da matéria discordante. Sabemos que a rima, para que seja eficaz, deve configurar não apenas uma harmonia entre sons de palavras correlatas, mas corresponder àquela unidade entre som e sentido, cuja aliança secreta faz a força da linguagem da poesia, como notou Valéry. No caso, o que se explicita é a inadequação do procedimento, a desarmonia profunda que a rima não pode vencer, pois que será sempre aleatória e gratuita diante do que deveria exprimir, mas não pode. A insuficiência da linguagem, a luta por vezes vã com as palavras se formula como um problema já neste início da poesia de Drummond. A poesia, para este poeta "sentimental", se torna o produto de um esforço, de um trabalho difícil, mediado pela reflexão. Essa impossibilidade de exprimir o que é necessário é dramatizada, no extremo, na última estrofe, e de novo ironicamente, como a cena de um idílio constrangido, análogo ao de Sentimental. Essa confidência difícil, tratada num quadro de conversa de botequim, mostra de uma vez por todas que o desajeitamento, a gaucherie do poeta, é a expressão condizente da naturalidade impossível: a natureza que se busca, porque já não se tem, é também uma problema para a linguagem. O fazer dificultoso ou problemático é uma exigência do que se procura exprimir. Desde o começo, portanto, dizer o que vai no coração é um caminho aporético, no qual se enfrenta o risco da não passagem, o infinito que desafia o dizer ensimesmado do poeta, debruçado sobre o próprio coração. Visto assim, o Poema de Sete Faces, mediante o chiste, linguagem de articulação, dá forma unitária às discórdias do coração, que é preciso de algum modo exprimir: as faces tumultuadas que pululam no mundo mas se organizam como sentimento refletido na forma do poema. No princípio, o chiste é já meditação, e sua forma reflexiva prepara os grandes e longos poemas que virão depois e nos darão, por fim, o perfil fino e preciso de um Drummond meditativo. Davi Arrigucci Jr. é crítico literário e professor de Literatura na USP

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