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Para além do discurso feminista

Em Dez Mulheres, a chilena Marcela Serrano põe em cena uma terapeuta, suas pacientes - e as fragilidades de todas

Por CAROLA SAAVEDRA É ESCRITORA , PUBLICOU , ENTRE OUTROS e PAISAGEM COM DROMEDÁRIO (COMPANHIA DAS LETRAS)
Atualização:

CAROLA SAAVEDRASantiago do Chile. Natascha, uma psiquiatra e terapeuta decide reunir suas pacientes (nove mulheres) numa casa para que elas se conheçam, contem suas histórias e talvez, encontrem umas nas outras a compreensão que até aquele momento ficara restrita ao consultório. Trata-se também de uma despedida. Natascha está indo embora para o Vietnã onde pretende resgatar algumas questões do passado. São nove relatos em primeira pessoa, e fora o fato de todas terem a mesma terapeuta, não há relações entre as personagens (aliás, o livro é apresentado como romance, mas poderia muito bem ser um volume de contos). Cada mulher expõe a sua história, com exceção da própria Natascha, cuja trajetória é narrada por sua assistente. Além disso, há uma espécie de prólogo no qual um narrador em terceira pessoa, mas assumindo o ponto de vista da psiquiatra, nos apresenta a primeira cena: da janela, Natascha observa as pacientes que desembarcaram da van e caminham pelo jardim em direção à casa. E um epílogo, no qual esse mesmo narrador nos mostra a terapeuta nesta mesma janela, desta vez as mulheres indo embora.Os relatos têm a estrutura do discurso confessional de uma terapia em grupo. Cada mulher faz uma pequena apresentação: nome, idade, trabalho, etc. e segue com a exposição de sua trajetória e problemas. Os relatos oferecem um panorama das mais diversas mazelas: solidão, velhice, mãe louca, filha bipolar, alcoolismo, abuso sexual, entre outros. Um panorama que inclui mulheres de diversas idades, estado civil, classes sociais, profissão, etc. Essa diversidade, porém, parece entrar em contradição com a conclusão de Natascha: "Afinal, todas nós, de um modo ou de outro, temos a mesma história para contar". E na busca de fatos que corroborem esse afirmação é possível encontrar dois aspectos que parecem ser comum a todas elas. O uso de antidepressivos: "Tomaram os remédios que tomam toda manhã (...). Quase todas, um antidepressivo receitado por ela mesma". E uma curiosa (e talvez reveladora) estatística. Apesar das histórias tão diferentes, o que todas as nove mulheres têm em comum é a falta de um relacionamento satisfatório com um homem. Duas são casadas, porém uma é frígida e a outra tem um marido que não a deseja. As demais (uma é viúva, e as outras separadas ou solteiras), não têm nenhum relacionamento atual. A única que parece ser feliz no amor é lésbica. De uma forma irônica e talvez não premeditada, os relatos dessas mulheres parecem contradizer qualquer aspecto feminista que o livro possa sugerir.No que diz respeito a questões mais específicas da literatura, pode-se afirmar que a obra cumpre aquilo que se propõe: contar histórias, construir personagens verossímeis, criar empatia com o leitor. Por outro lado, apesar de criar para cada personagem um universo próprio, não há uma diferenciação entre elas no nível da linguagem. Ou seja, com poucas variações, bastante óbvias, como por exemplo, o uso de expressões em inglês nos relatos das mulheres de classe alta - "substituta part-time' (Francisca), "eu estava afastada havia anos do meu background"; "eu, como loner que sou", "fucking maternidade" (Simona); "trabalho full time", "metia chifres non stop", "me transformei na party monster"(Guadalupe) -, a voz de cada personagem é a da própria autora. O que não chega a prejudicar o universo ficcional do "romance", já que o estilo, ágil e envolvente, impede que se desfaça o pacto inicial com o leitor, principalmente o leitor em busca de entretenimento. O livro poderia trabalhar de forma mais aprofundada sua estrutura polifônica e criar universos que se expressassem não apenas nos fatos (na história), mas também na própria linguagem? Sim, poderia. Mas isso não vem ao caso, pois aí não teríamos Dez Mulheres, de Marcela Serrano, e sim outra obra.

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