Oscar 2013: A gota d'água

PUBLICIDADE

Por ANTONIO SKÁRMETA
Atualização:

Quando na noite deste domingo a equipe que fez o filme No baseado em minha obra El Plebiscito aparecer por um minuto nas telas dos televisores do mundo desfrutando a glória de disputar com outros quatro filmes o Oscar de melhor filme estrangeiro, eu lhe darei uma fraterna piscadela de olho de Santiago, admirado pelo ímpeto, a tenacidade e a qualidade de seu trabalho que a levou a essas alturas. Ao mesmo tempo, percorrerei uma vez mais o caminho que teve minha obra desde que descobri o encanto de seu assunto, a derrota do ditador Pinochet, "sem ódio nem violência", até chegar ao filme com atrativo internacional que é hoje.Quando, em 1988, Pinochet encena um plebiscito em que pede ao povo que diga SIM à sua aspiração de ser presidente do Chile por mais oito anos, dessa vez sem bombardear La Moneda, mas com um lápis e um papel, a sociedade chilena é sacudida pela dúvida.Esse plebiscito que Pinochet convoca será uma farsa para mostrar ao mundo uma fachada democrática e que será preciso rechaçar com veemência, convocando à abstenção para não fazer o jogo do ditador - ou uma possibilidade real de vencê-lo nos seus próprios termos em se conseguindo entusiasmar as pessoas a abandonarem seu fatalismo derrotista e comparecer às urnas? A dúvida era atravessada pela brutalidade do regime de Pinochet que durante 15 anos havia torturado, feito desparecer pessoas, assassinado os valentes militantes dos partidos democráticos e seus dirigentes sindicais.Um regime que havia semeado tormentas merecia uma tempestade que o apagasse da história para sempre. No entanto, esse projeto revolucionário estava longe das possibilidades dos patriotas chilenos.Não havia força política unitária para levá-lo adiante e muito menos força militar significativa que pudesse augurar triunfos guerrilheiros que algum dia desembocassem em uma revolta popular de massa "à maneira árabe".A maioria dos dirigentes democráticos chilenos se convenceu de que era preciso aceitar o desafio de Pinochet e convocar as pessoas a votar NÃO no plebiscito.Votar não ou não votar. A propósito do filme de Pablo Larraín, alguns políticos, outrora lúcidos e hoje senis, supõem que a ideia do diretor é mostrar que foi a campanha publicitária do NÃO que derrotou Pinochet e não os 15 altivos e heroicos anos de resistência à ditadura protagonizados pelo povo, os estudantes, os sindicatos e os partidos políticos.Na conjuntura política que o país enfrentava estava claro que os democratas íntegros votariam NÃO a Pinochet. O problema não eram os convencidos, mas os INDECISOS: aqueles que não queriam mais Pinochet, mas temiam o "comunismo".O Chile é um país profundamente dividido e quando há uma votação, ganha quem receber um pouquinho mais do que 50% dos votos. Em 1988, como agora, 2013, o candidato que quisesse triunfar teria de somar às suas fontes de apoio sólido um pouquinho do voto não militante ou indeciso. Talvez seja diferente em Timbuctu, mas no Chile é assim. Os presidentes se elegem com aproximadamente 51% dos votos e o perdedor consegue beirar os 49%. E é disso que trata a maravilhosa campanha publicitária do Não, ao menos em minha obra original e no meu romance O Dia em Que a Poesia Derrotou Um Ditador. Os inteligentes propagandistas do NÃO, que foram espancados e torturados pela polícia de Pinochet, leram bem a conjuntura que os indecisos colocam e falam para eles. E o fazem bem. E os seduzem. E os animam a VOTAR NÃO, contra os céticos que os chamavam a NÃO VOTAR. Esse é o conto, a campanha publicitária do NÃO não derrota Pinochet. Mas é a gota que faz o copo transbordar. As cascatas da liberdade precisaram que antes corresse muita água por baixo das pontes.A conexão canadense. A origem do filme No, agora na forma de adivinhação para meus leitores brasileiros. Quem acertar ganha um par de skis para deslizar sobre a neve de Portillo, perto de Santiago.Vejamos: o que têm a ver com o filme No o presidente do Pen Club Internacional, John Ralston Saul, a ex-governadora-geral do Canadá, Adrienne Clarkson, o filme americano Entre Umas e Outras (Sideways), o diretor de cinema brasileiro Fernando Meirelles, minha mulher, Nora Preperski, e Margaret Atwood? Parabéns aos vencedores. Para os que não resolveram o enigma, esta é a solução.O imputado Skármeta será doravante chamado simplesmente de "Sk." para pô-lo no devido lugar. Sk. é admirador da literatura canadense. Por isso, quando se organiza no Chile um encontro de escritores canadenses e chilenos na Academia Diplomática, ele preside os fóruns e mesas-redondas. O atual presidente do Pen Club Internacional, John Ralston Saul, firme defensor da liberdade de expressão e protetor dos escritores encarcerados no mundo inteiro, é marido da ex-governadora-geral do Canadá, Adrienne Clarkson. Em uma de suas visitas (de SK.) a Toronto para dar uma conferência, John Ralston Saul o convida para ficar em sua casa e organiza um jantar em que estavam presentem Margaret Atwood e o produtor de cinema Niv Fichman, que tem no seu currículo o filme triunfal O Violino Vermelho e que mais adiante faria Ensaio sobre a Cegueira com o cineasta brasileiro Fernando Meirelles, e a atuação estelar de... Gael García Bernal, o mesmo herói de No.Entre copos. Durante o jantar, o produtor Niv Fichman faz uma análise elogiosa dos vinhos canadenses e revela ser um provador quase profissional desses vinhos. Como é de praxe, elogia-se unanimemente o vinho chileno e Niv declara que apreciaria percorrer os vinhedos do Chile para provar na proximidade de sua origem os apreciados líquidos. Sk. anuncia-se que não seria nenhum sacrifício para ele acompanhá-lo nessa aventura quando viajasse ao Chile. Brinda-se profusamente por tal "ingrata" perspectiva. E, evidentemente, Sk. se imagina protagonista do filme Entre Umas e Outras.Mas quando chega o momento e Niv transforma o projeto em realidade e vem ao Chile, Sk. está no delírio da criação do romance O Dia em Que a Poesia Derrotou Um Ditador e prefere manter-se sóbrio diante do seu computador, ou ao menos embriagado somente pela literatura. Sua mulher Nora, bela e não abstêmia, leva Niv em seu Jeep a um vinhedo do Valle Central. Durante o trajeto, Niv lhe pergunta se Sk. tem algo recente que possa ser levado ao cinema. Nora, com parcialidade marital, lhe conta que ele escreveu uma obra "maravilhosa" sobre o Plebiscito de 1988, que daria um grande filme. Niv lamenta não ler espanhol, mas Nora o consola: SK. tem a obra traduzida para o inglês e o alemão e a leu fazendo ele próprio todos os papéis em universidades e teatros americanos e europeus.Nessa mesma noite, Niv pede a Sk. que leia-atue a obra e Sk. não só o faz, como lhe mostra uma montagem de dez minutos com subtítulos em inglês que ele mesmo editou na campanha publicitária real de 1988. Ao terminar o serão, Sk. percebe que Niv está levitando vários centímetros acima do nível do chão.Aí o produtor canadense leva a obra a Pablo Larraín, a quem admira por filmes que viu em Cannes. Sk. não conhece Larraín pessoalmente, mas gostou muito de Tony Manero. Niv começa a pensar em uma coprodução chileno-canadense de El Plebiscito. Até aqui a pré-história do filme No.Seguem-se debates frequentes na casa de Sk. com Niv, os irmãos Larraín, e escritores que Niv ou Larraín trazem, sobre o roteiro do filme, do qual Sk. não quer participar para lhes dar plena liberdade e permitir que se desate a energia da nova geração de cineastas. Sk. comenta, opina, critica, sugere e estimula.O resto podem contar melhor os irmãos Larraín, o roteirista Pedro Peirano, a produtora Canana de México, Gael García Bernal, o produtor brasileiro Daniel Marc Dreifuss: a passagem triunfal de No por Cannes e tantos outros festivais, seu brilhante trabalho de promoção e os contratos com distribuidoras internacionais de grande poder, o debate no Chile sobre arte e realidade.Só um detalhe irônico: Niv Fichman, o nobre iniciador do maravilhoso complô, afasta-se do projeto e da coprodução, pois descobre no meio do caminho que a legislação canadense não permite entrar com recursos nesse filme.No Chile há um dito festivo e rimado para descrever essa situação: "El es el Capitán Araya: embarca a los demás y se queda en la playa". Boa sorte no domingo, rapazes. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK   ANTONIO SKÁRMETA É ESCRITOR CHILENO,  AUTOR DE,  ENTRE OUTROS,  O CARTEIRO, O POETA,  TAMBÉM ADAPTADO PARA O CINEMA  

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.