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Os olhos cheios de cinema

Fazia tempo que eu não via Ronaldo Brandão, e a notícia de sua morte, em março passado, chegada a mim com semanas de atraso, veio rebobinar um turbilhão de ótimas lembranças, quase todas divertidas. Fui aos necrológios, e lá estava a enumeração do que Ronaldo foi em seus 76 anos de vida – jornalista, professor, crítico, ator e diretor de teatro, crítico e ator de cinema, tudo isso com brilho e graça inconfundíveis. Assimilei a perda, mas faltava voltar a Belo Horizonte, o que fiz na semana passada, àquela mesa de calçada num boteco na esquina de Fernandes Tourinho com Pernambuco, no bochicho da Savassi, e provar a tristeza de lá não ver a figurinha magra e elétrica, borbulhante de talento, de uma das pessoas mais interessantes que já conheci.

Por Humberto Werneck
Atualização:

Perdi a conta das vezes que o visitei – o verbo é este – naquele cantinho, seu escritório, dizia, no qual dispunha até de telefone, o orelhão em frente. Ali Ronaldo despachava, quer dizer, recebia os amigos que passavam, não raro interceptando-os com a gesticulação nervosa de seus braços muito finos. Também não era raro haver na cadeira ao lado alguém que ele, com caricato espalhafato, apresentava como namorado, fazendo rir e corar o moço da vez.

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Era ali, naquele concorrido posto de observação, entre duas livrarias, a Scriptum e a Quixote, que Ronaldo Brandão me deliciava e a muitos mais com a pintura cáustica de uma Belo Horizonte cujo conservadorismo ele desde cedo desafiou com ousadias de homossexual explícito. Em 1972, por exemplo, quando isso não se usava, muito menos em Belo Horizonte, Ronaldo Brandão descoloriu os cabelos, com o que sua cabeça, brilhante por dentro, por fora ficou não menos flamejante. Estava montando Baal, explicou, e lhe vieram ganas de sentir-se alemão como Brecht, o autor da peça.

Com aquele visual à la Jean Harlow, permitiu-se encenações também na vida real – como no dia, contava, em que, passando-se por repórter da revista francesa Le Nouvel Observateur, entrevistou um casal de figurões das letras belo-horizontinas, que só depois, enfurecidos, se deram conta do trote em que, anchos de vaidade, haviam caído.

Aluno da primeira turma de Jornalismo da UFMG, formada em 1964, desde o ano anterior Ronaldo Brandão foi crítico de cinema e teatro, atividade que lhe valeria admiração supraestadual, mas também desafeições. Certa vez, à saída de uma estreia, um repórter de rádio lhe perguntou se o espetáculo em questão seria um sucesso. “Tomara que sim”, lascou Ronaldo, “porque já é um fracasso”.

Na redação da Veja, onde trabalhou de 1973 a 1976, não causou espécie apenas pelos sapatos verdes com que desfilava. Um dia, foi chamado às falas por haver criticado o desempenho de uma atriz que vinha a ser amiga do temperamental diretor da redação. Deu o troco na primeira oportunidade. Como demorasse a entregar uma crítica, foi cobrado pela chefia – e, atrevido, retrucou com um bilhete em que dizia algo assim: “O crítico já viu o espetáculo, e se não escreveu o texto é porque ainda não conhece a opinião da casa”.

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Na imprensa paulistana, Ronaldo Brandão começou pelo jornal Aqui São Paulo, de Samuel Wainer, por indicação de Paulo Francis – um dos críticos de teatro que mais admirava, ao lado de Bárbara Heliodora e Ian Michalski. Em seguida, foi um dos mineiros que ajudaram a fazer do Jornal da Tarde uma referência na imprensa brasileira. Da Veja, decidiu sair “antes de Chaplin morrer”. Ao fechar seu parêntese paulistano – foram 6 anos –, passou-lhe uma chave de ouro: “Em São Paulo, você ganha muito bem, mas gasta tudo – metade com pizza, metade com táxi”.

De volta a Belo Horizonte, Ronaldo logo trocou o jornalismo pelo teatro, na tripla condição de ator, diretor e produtor. “Deixei a crítica para ser criticado”, cutucava. Nos últimos anos, torcia o nariz para quase tudo o que via nos palcos, e proferia julgamento amargo: “Os produtores, antigamente, privilegiavam textos artísticos, mas hoje procuram pretextos”. O ator, dizia, “agora só quer ir para a Globo”. Se o nível cultural dos meios lhe parecia ter caído muito, era “culpa da Globo, que glamorizou modelos e manequins como se fossem atores”.

Não sei se Ronaldo, como tanta gente, terá trocado os cinemas, cada vez mais raros e mais fartos em pipoca, pelo filme em casa. Quase aposto que não, pois me lembro da apaixonada ênfase com que ele falava da aventura de estar na grande sala, perdido e ao mesmo tempo irmanado numa irrepetível composição de estranhos, à mercê do sonho que se acenderia mal as luzes se apagassem.

Numa entrevista, 11 anos atrás, Ronaldo Brandão afirmou ter visto 35 mil filmes. Admitiu que exagerava – mas que importância tinha isso para quem sabia que ao morrer teria “os olhos cheios de cinema”?