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Coluna do escritor e arquiteto Milton Hatoum sobre literatura e cidades

Os loucos da província

Marchava descalço, à frente da banda da PM; um maestro distraído, de passos sinuosos

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Por Milton Hatoum
Atualização:

Ele era o louco dos sábados. Um estrambótico simpático, com mania de pacificador, e feioso de dar dó. Os pontos azuis e vermelhos brilhavam, longe, às oito da manhã, e quase sempre nos sábados quentes do equador. As manchas coloridas cresciam na avenida Getúlio Vargas, se alongavam em figuras geométricas, e quando passavam em frente à janela do meu quarto davam forma e volume ao corpo. Vermelhos o rosto, o pescoço e a cabeça calva; azuis e brancas as listras do pijama, inesquecível. Ali marchava o Bombalá, o primeiro louco da minha vida de jovem ginasiano. Marchava descalço, à frente da banda da PM; os soldados-músicos não molestavam seu maestro distraído, de passos incertos e sinuosos. Vez ou outra, Bombalá estacava para admirar um pássaro, que só ele enxergava; depois ria, batia asas e conversava com a ave, que já voava, longe; mas o papo se prolongava num diálogo secreto: o homem na terra, o pássaro no silêncio do espaço, enquanto a banda militar passava como um estrondo de metais e tambores na manhã incomum. Foi num sábado tumultuado que a gente viu o Bombalá de muito perto. Qualquer música ao vivo e em movimento o atraía, e dessa vez eram os hinos patrióticos e marchas militares interpretados pelas bandas do Colégio Estadual do Amazonas e do Rui Barbosa. Ensaiávamos de uniforme completo, tão adaptado ao clima quente e úmido: camisa de manga comprida com abotoaduras, gravata preta com a insígnia dourada, cinturão de couro sobre a calça comprida de flanela cinza, botas e meias pretas. Os alunos do Rui Barbosa usavam um uniforme azul, da cor da bandeira pátria. As bandas tocavam músicas diferentes, e marchavam em direções opostas, mas na mesma pista da avenida. O encontro era inevitável; o choque e a batalha, imprevisíveis. Lembro que voaram baquetas e cornetas, a boca de uma tuba sufocou uma cabeça miúda, os metais se chocavam numa gritaria de gralhas, e o Chiado, do segundo ginasial, tombou ensanguentado nas pedras cinzentas. A valentia e o destemor podiam ser atributos da idade, mas o ódio mútuo era inexplicável. No auge da selvageria surgiu o estrambótico de pijama listrado. Ficou plantado entre os que vinham à direita da avenida e os que iam à esquerda, mas agora tudo estava confuso, fundido na mesma massa de rancor e sangue. Impávido, ele gesticulava como um maestro do outro mundo, e gritava, cheio de alegria: “Cambada de doidos! Eu sou o Bombalá e não sei quem sou, mas vim em paz e quero a paz!”. Só louco mesmo para alimentar tanta fantasia de paz entre bandos inimigos e furiosos, numa batalha em que todos perderiam. Mas foi assim que terminaram os ensaios para o desfile do Dia da Pátria naquele sábado: 5 de setembro de 1964. Às vezes, quando a banda da PM dava meia-volta na Getúlio Vargas, o Bombalá prosseguia sua marcha sem cadência na larga avenida, a cabeça raspada, escaldada pelo sol a pino, os pés esfolados pelas pedras em brasa. Da janela do quarto, eu seguia com o olhar o maestro pacificador. Aos poucos a cabeça e o pijama se tornavam pontos vermelhos e azuis, e essa mancha colorida entrava na Joaquim Nabuco, continuava pela Vila Municipal até o fim da cidade, depois se embrenhava na floresta, atravessava o Brasil até aparecer na minha lembrança em pleno carnaval na rua do Sumidouro, onde o fedor do rio Pinheiros é insuportável, e o Bloco dos Duendes batuca e pula numa alegria doida de Bombalá. 

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