OS ARQUIVOS DE LINA BO

Mais de 6 mil documentos e 17 mil imagens da arquiteta são catalogados

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Por Camila Molina
Atualização:

A arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (1914-1992) tinha uma maneira direta de dizer o que pensava. Em 1964, já vivendo no Brasil havia quase duas décadas, ela foi convidada a apresentar na Itália o projeto do Museu do Mármore para a Toscana, perto da região de Carrara. Não pôde ir por conta do conturbado contexto do golpe militar brasileiro. "Aqui a situação é complicada e tenho grandes responsabilidades no Nordeste. Fiz esboços em Milão, rapidamente", escreveu, naquele ano, a arquiteta a um dos comissários do projeto. Lina acreditava fielmente que os italianos não entenderiam seu esboço de moderno museu e jardim selvagem sem que ela própria pudesse explicá-lo a seus conterrâneos. "Uma discussão baseada nas minhas anotações resultaria numa interpretação errada, especialmente em um país como a Itália, ainda acostumado a julgar arquitetonicamente em termos formais e não de conteúdos."A carta da arquiteta, escrita em italiano, está entre os mais de 6 mil documentos e cerca de 17 mil fotografias que formam o Arquivo Documental Lina Bo Bardi, uma preciosidade para pesquisadores que até então estava abrigada em caixas, sem nenhum tipo de organização. "São arquivos complexos, de uma época em que não existia computador. Portanto, as pessoas usavam telegramas, quando absolutamente necessário, e cartas. E Lina estava acostumada a anotar. Anotava tantas coisas, até seus pensamentos, por isso é interessante", diz Anna Carboncini Masini, uma das diretoras do Instituto Lina Bo e P.M. Bardi.Foi um ano e meio de trabalho intenso para catalogar e fotografar os documentos e imagens referentes ao arquivo pessoal e de trabalho da arquiteta, projeto realizado com cerca de R$ 250 mil cedidos ao Instituto Lina Bo e P.M. Bardi pela Petrobrás. Por meio, ainda, de um edital da Fapesp, foi possível colocar todo o material em móveis e mapotecas especiais agora abrigadas em dois quartos de serviço da Casa de Vidro no bairro do Morumbi, patrimônio tombado de arquitetura, local que Lina projetou e construiu para viver com seu marido, o historiador Pietro Maria Bardi, ex-diretor do Masp.Primeiramente, o Arquivo Documental Lina Bo Bardi já está disponível, a partir deste mês, para pesquisadores que poderão consultá-lo na Casa de Vidro mediante agendamento por meio do e-mail pesquisa@institutobardi.com.br. O programa da Petrobrás permitiu ainda que um guia com todo o material disponível, dividido por projetos arquitetônicos e períodos, possa ser acessado através do site www.institutobardi.com.br (exemplares impressos também serão distribuídos a instituições e bibliotecas), dando uma ideia precisa do tesouro catalogado.Depois da cozinha. Os visitantes da Casa de Vidro, conservada fielmente à maneira como nela viveram Lina e Pietro (com móveis desenhados pela arquiteta e mesclando obras das artes erudita e popular), encontrarão, depois da cozinha da residência, os pequenos quartos de serviço nos quais estão as mapotecas com os documentos e fotografias catalogados. É uma surpresa poder manusear revistas da vanguarda europeia, como exemplares da holandesa Wendingen, ou edições japonesas trazidas pelo casal de italianos que se naturalizou brasileiro.Outra curiosidade, entre escritos, inclusive referentes a projetos não concretizados, como o do Museu à Beira do Oceano, de 1951, para São Vicente, é a documentação que Lina Bo Bardi realizou espontaneamente sobre arte popular, uma de suas bandeiras. Em uma carta de 1965, a arquiteta faz menção à censura que sofreu em relação a uma exposição de objetos da cultura nordestina que ela faria em Roma a pedido do Itamaraty. A mostra, semimontada com carrancas, ex-votos e bonecos de barro, foi proibida de ser inaugurada pelo então embaixador brasileiro que disse, segundo a arquiteta: "Não abro essa exposição porque é miserável".O próximo passo será a digitalização do arquivo documental. "Os 7,5 mil desenhos de Lina, entre projetos elaborados e esboços, já estão arrumados, catalogados e acondicionados em mapotecas. Terminamos agora esse projeto e as obras foram fotografadas também com a ajuda da Caixa Econômica Federal", conta Anna Carboncini. Segundo a diretora, há um interesse crescente - inclusive, de pesquisadores estrangeiros - em torno de Lina Bo Bardi, que terá o centenário de seu nascimento a ser comemorado em 2014 (leia mais abaixo). O Centro Pompidou da França, diz Anna, tenta, há anos e avidamente, adquirir para seu acervo conjunto de desenhos da arquiteta que projetou o Masp, o Sesc Pompeia e o Solar do Unhão, na Bahia."Lina e o Bardi eram pessoas que guardavam tudo! Até bilhetinhos. É uma maneira de viver, de fazer", afirma a diretora do instituto. Dessa maneira, há a necessidade de também catalogar o arquivo de Pietro Maria Bardi que está abrigado na Casa de Vidro (outra grande parte dos documentos e livros do historiador foram doados ao Masp). Vale dizer que os 2,8 mil volumes da biblioteca do casal, na residência, também foram organizados - os arquitetos japoneses Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa, do escritório Sanaa, premiados com o Pritzker, projetaram mobiliário especial para os livros de Lina e Pietro. As maquetes dos móveis estão na residência, mas Anna diz que são, por ora, muito caros para serem construídos.

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