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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Ódio acumulado

Segundo Flaubert, nada o expressa melhor que a cara de tacho dos filistinos burgueses diante de uma obra de arte que não se deixe apreciar e usufruir como quem chupa uma laranja

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Atualização:

Dediquei parte do feriadão carnavalesco à leitura de Marx. Não de Karl Marx, nem de Groucho, mas de William Marx. Por coincidência, para ele, também, um espectro ronda o Ocidente – o espectro do ódio à literatura. Não chegou a escrever um manifesto, mas dois de seus livros poderiam terminar com esta exortação: “Literatos de todos os países, uni-vos!”. Unidos contra o que Gustave Flaubert, em carta ao companheiro Émile Zola, rotulou de “ódio à literatura”. 

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Apesar do nome anglo-teutônico, William é um provençal de 51 anos, com invejável currículo acadêmico e sólida carreira como ensaísta literário e professor universitário. Dá aulas de literaturas comparadas na Universidade de Paris em Nanterre e já publicou uma dezena de livros. O penúltimo saiu há quase três anos pelas Editions de Minuit, com o flaubertiano título de La Haine de la Littérature e 221 páginas. Inédito em português, ganhou há pouco tradução em inglês da Harvard University Press, à venda em versão eletrônica na Cultura (R$ 68,29) e no Kindle da Amazon (US$16). 

Que ódio é esse? Segundo Flaubert, nada o expressa melhor que a cara de tacho dos filistinos burgueses diante de uma obra de arte que não se deixe apreciar e usufruir como quem chupa uma laranja. O olhar vazio de quem considera a poesia politicamente inútil, ocasionalmente acompanhado de comentários do tipo “isso eu também posso fazer” – ou, pior ainda, “isso até eu faria melhor” –, aplicáveis a qualquer manifestação artística. 

Esse, porém, é apenas um dos desafetos da literatura. Os dogmas de certa crítica formalista, a pregar a “autossuficiência do texto”, totalmente desvinculado do contexto histórico em que foi gerado, também entram na mira do ensaísta, coadjuvados pela censura (destaca Huckleberry Finn e poderia ter mencionado o nosso Monteiro Lobato), a internet (a proliferação de telas e a ubiquidade das redes sociais dificultam a concentração exigida pela leitura) e os pruridos impostos pelo politicamente correto (pobres dos professores que precisam recomendar livros passíveis de ferir a suscetibilidade de alguns alunos). Para início de conversa.

Não obstante, William Marx, leitor onívoro e há muito atento à desvalorização da leitura, acredita que a literatura como forma de arte sempre existirá. No início da década passada, ele cutucou o vespeiro pela primeira vez, em L’Adieu à la Littérature, explorando a trajetória de autores que condenaram a literatura e abandonaram a profissão nos séculos 18 e 19. Já era, dizem, um ensaio para La Haine de la Littérature, dedicado às condenações do chamado público externo e cobrindo território bem mais amplo: uns 3 mil anos de poesia, ficção, teatro – e ódio acumulado. 

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Platão, como é sabido, expulsou os poetas da República, em prol dos filósofos, do primado do logos rigoroso, do racional como regente dos espíritos e da cidade. Os filósofos empinavam o nariz para os poetas (os “literatos” da época) e desdenhavam a capacidade das musas de enriquecer o espírito das pessoas, colocá-las no bom caminho. Conversa fiada. 

William Marx abre o livro com a Ilíada de Homero, a guerra de Troia em seu décimo ano de morticínio, evocada, desde o primeiro verso, por uma deusa ou musa. As musas não passavam de médiuns, xamãs, go-betweens; não falavam pelo poeta, mas de dentro dele (“moi ennepe”, em grego). Nada a ver com as musas que hoje até desfilam em escolas de samba. Elas já não eram o que foram ou simbolizaram quando um novo logos hegemônico condenou (ou tentou condenar) a literatura à irrelevância: as ciências, a tecnologia.  Não faz muito tempo, o filósofo britânico Gregory Currie dedicou-se a esnobar a literatura, a criticar os conceitos de psicologia utilizados na ficção, culminando com um artigo, para o New York Times, em que punha em dúvida a capacidade de romances, contos e poesias “aumentarem a empatia humana”. Afinal, os nazistas cultivavam o hábito da leitura, argumentou o filósofo. Sem dúvida, contra-argumentou William Marx, mas o número de ignorantes e biblioclastas entre os nazistas era consideravelmente superior.

Quando concorria às eleições presidenciais de 2006, Nicolas Sarkozy questionou a inclusão do romance Princesa de Clèves (1678), de Madame de La Fayette, nos exames para o serviço público da França. A seu ver, somente livros sobre coisas práticas deveriam constar do currículo. Se um líder político francês pensa assim, que dirá o resto? De todo modo, a polêmica teve um desfecho otimista: o romance, clássico da literatura francesa adotado em todos os liceus do país, entrou na lista dos mais vendidos e ganhou uma vaga na Biblioteca da Plêiade.

William Marx prefere ver a literatura como saco de pancadas do que desprezada, reduzida a mero ornamento e tornada irrelevante. Para ele, o discurso antiliterário, seja de filósofos, de moralistas ou de autores de vanguarda, é mil vezes preferível ao silêncio típico das sociedades onde a literatura só existe como entretenimento, como um jogo sem apostas. Ao atrair atenção negativa, a literatura ao menos dá mostras de que ainda tem importância. O pior que lhe pode acontecer é a indiferença. A indiferença que lhe devota, por exemplo, Donald Trump. 

Qual a importância da literatura na era do pós-fato?, indaga o professor, preocupado com o que está por vir. É para se preocupar mesmo. Caso venha o pior, nem poderemos dizer que Platão venceu. 

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Opinião por Sérgio Augusto
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