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Obras raras de Di Cavalcanti agitam o mercado de arte

Paulo Kuczynski garimpa quadros nunca exibidos do artista, símbolos de sua busca pela renovação estética. Entre as obras, está uma da família de José Lins do Rego

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

O marchand Paulo Kuczynski se autodenomina um “caçador de obras-primas”. Com efeito, olhando as nove telas raras de Di Cavalcanti (1897-1976) que ele expõe, a partir de sábado, para convidados, em seu escritório de arte, é justo dar razão ao homem que vive atrás de colecionadores particulares perseguindo o que de melhor a arte brasileira produziu depois do modernismo. Grande nome inspirador da Semana de Arte Moderna de 1922, Di Cavalcanti passou os últimos anos de vida recorrendo a composições repetitivas e temas igualmente gastos, mas as telas da mostra - a maioria dos anos 1930 - conservam o frescor da renovação estética modernista que o levou a buscar uma correspondência visual brasileira para a picassiana reinvenção da figura feminina. Di Cavalcanti descobriu a pintura de Picasso um ano depois da Semana de Arte Moderna, em sua primeira viagem à Europa, em 1923. Não há na mostra uma mulata da época, mas uma tela da década de 1920, Descanso dos Pescadores, presenteada pelo pintor ao escritor paraibano José Lins do Rego, já mostra uma mulher sentada na areia a desafiar os padrões da época - na forma e no comportamento. A liberação definitiva viria na década seguinte - e a prova são quatro telas em que mulatas se oferecem como padrão alternativo brasileiro das mulheres picassianas. Há, por exemplo, A Mulher do Caminhão (1932), uma Olympia ainda mais despudorada do que a da paródia de Picasso da famosa tela de Manet. Também de 1932 é o pastel Mulher no Divã, cenário matissiano com um nu frontal ousado para a época - e descrito pelo poeta Ferreira Gullar no catálogo da mostra como “a imagem da mulher brasileira”. Gullar, um dos autores do Manifesto Neoconcreto em 1959, rendeu-se às formas curvas de Di Cavalcanti, escrevendo no texto de abertura que Di Cavalcanti, ao contrário de seus contemporâneos da Semana, “fala do Brasil suburbano e busca na mulher brasileira mestiça a expressão de um novo conceito de beleza em contraposição à da arte acadêmica, que retratava a mulher branca e sofisticada”. Vale acrescentar que o Brasil, na época, a exemplo do que acontecia na Europa, assimilou o discurso da “raça pura”, promovendo concursos de eugenia. Não é pouco, portanto, a descoberta, segundo Gullar, “de uma nova Vênus mulata, de lábios carnudos, seios bastos e quadris pronunciados”.

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Para o bem e para o mal, Di Cavalcanti ficaria marcado como o “pintor das mulatas”. No entanto, essa é uma redução injusta. O “hedonista” que pintava quadros que exalavam “um cheiro forte, penetrante e lúbrico de mulatas despidas”, como definiu o crítico Luís Martins, também foi o pintor das cores e cenas escuras, de natureza plúmbea, que mais tarde iriam reviver nas telas do último período do gaúcho Iberê Camargo. Exemplo disso é a aquarela Bordel, da década de 1930, que até em sua teatralidade antecipa a fase derradeira de Iberê. Nela, uma prostituta se oferece, patética, sobre um palco, enquanto cenas da vida do bordel retratam à volta dela um encontro fugaz entre dois seres solitários. Kuczynski aponta como contrapartida desse cenário escuro as telas dos anos 1920, em especial Descanso dos Pescadores, para mostrar que há uma nítida diferença até mesmo na paisagem que Di Cavalcanti produziu entre as duas décadas. A praia da tela presenteada a Lins do Rego tem uma luz tropical que contrasta com a falta dela na Pedra da Moreninha (década de 1930), óleo sobre tela colada em cartão, integrante da retrospectiva do artista no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1971. Como observa Kuczynski, não é a praia dos ricos, mas a dos trabalhadores (a figura frontal da obra é a de um deles), seja em Paquetá ou no cais de Maria Angu. Em 1928, Di Cavalcanti filiou-se ao Partido Comunista e é dessa época um retrato que fez do escritor modernista paulistano Oswald de Andrade (1890-1954), um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, cujos 90 anos são lembrados por Kuczynski com a mostra. Pensava-se que a aquarela fosse um retrato do próprio Di, mas a filha de Oswald de Andrade, segundo o marchand, descobriu que se trata de uma ilustração para um poema do pai, Solidão, publicado na revista semanal Paratodos, ideologicamente vinculada ao PC. Gullar observa, a respeito do óleo sobre tela Conversa no Cais (1938), que os temas de Di Cavalcanti são “tipicamente brasileiros”, mas que sua linguagem é inconfundível. A tela foi pintada na França e mostra duas mulheres em trajes africanos - uma delas com os seios pulando para fora do vestido. Embora evoquem as clássicas figuras femininas de Picasso da Suíte Vollard (1934), não sugerem a mesma felicidade estampada nos rostos das erotizadas personagens do pintor andaluz, mas o peso das mulheres do Norte da África num ambiente lúgubre, o cais do porto de alguma cidade francesa. Dois óleos dos anos 1940 mostram o lado mais lírico do pintor. Há uma natureza-morta (um vaso de flores) que esteve na exposição 30 Mestres da Pintura no Brasil, no Masp, em 2001, e um tela que retrata a serenata de um flautista para sua amada. Ambas atestam a grandeza de um colorista que se perdeu no caminho.

ALGUNS INESQUECÍVEIS Paulo Kuczynski Escritório de Arte Al. Lorena, 1661, telefone 3064-5355. Aberta para o público a partir do dia 23. De segunda a sexta, das 10h às 18h

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