O teórico Yve-Alain Bois contra Tom Wolfe, o corsário da arte

Autor de livro sobre legado da vanguarda, o historiador critica o jornalista por obra sobre o mesmo tema

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Por Redação
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'Crack', de Lichtenstein: Wolfe associa pop aos filisteus. Foto: Abergs Museum/Reuters

 

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SÃO PAULO - Dois livros simultaneamente publicados no Brasil voltam às trincheiras da crítica de arte para retomar a guerra entre a visão europeia e a americana da modernidade no século 20. Do lado europeu está A Pintura como Modelo (Editora WMF Martins Fontes, tradução de Fernando Santos, 448 págs., R$ 89), do crítico, professor e historiador de arte argelino Yve-Alain Bois, de 57 anos, coeditor do mais influente periódico sobre arte da atualidade, October. Do lado americano está uma nova edição do livro A Palavra Pintada (Rocco, tradução de Lia Wyler, 128 págs., R$ 25), do polêmico jornalista Tom Wolfe, de 78 anos, inventor do termo "radical chic" para designar o esquerdismo da classe alta.

 

Bois é um estruturalista de esquerda, nascido numa família de poucas posses. Tom Wolfe cresceu sem problemas financeiros. Na infância, aprendeu sapateado e balé enquanto Bois lavava carros para comprar livros. Wolfe recusou a admissão na Universidade Princeton, onde hoje Bois dá aulas, preferindo ingressar na tradicional Universidade Washington and Lee (de 1749), onde estudou o pintor Cy Twombly. Dois homens, duas visões de mundo. Tom Wolfe, um dos fundadores do new journalism, nunca demonstrou apreço pela vanguarda americana dos anos 1950, formada por pintores do expressionismo abstrato (Jackson Pollock, Willem de Kooning), ou a dos anos 1960, representada pelo segmento pop (Andy Warhol, Lichtenstein). Isso para não falar de Rothko.

 

Em A Palavra Pintada, sem medo de jogar fora o bebê com a água da bacia, Wolfe diz que todos são frutos do delírio teórico dos críticos. A arte moderna, defende ele, virou literatura nos escritos de Clement Greenberg (1909-1994), Harold Rosenberg (1906-1978) e Leo Steinberg, de 89 anos - três dos mais respeitados críticos americanos do século 20, apesar de enclausurados por Wolfe no depreciativo neologismo "Cultureburg" - modo de dizer que dominavam o mundo das artes com teorias feitas para justificar os altos preços das obras pagos pela elite americana. A pintura "plana" dos expressionistas abstratos, afirma o corsário jornalista, só existiu para ilustrar os textos desses críticos. Deixou de ser uma experiência visual para se tornar literária. Greenberg, segundo ele, teria usado, e não descoberto, Jackson Pollock, assim como Rosenberg criado Willem de Kooning.

 

Pura desonestidade de Wolfe, diz por telefone, ao Estado, o crítico Yve-Alain Bois, que, nos anos 1980, decidiu trocar a França pelos EUA justamente por identificar nos críticos americanos uma abertura para o diálogo que não encontrava em Paris - foi na América que Bois ficou amigo de Rosalind Krauss e Douglas Crimp, ambos fundadores de October e conceituados críticos ligados a históricos movimentos como o minimalismo, também detonado por Wolfe.

 

Tom Wolfe, em seu livro, originalmente publicado em 1975, previu que no século 21 - ou seja, hoje - os críticos do expressionismo abstrato seriam expostos em museus como figuras germinais do período (de 1945 a 1975), e não os artistas que promoveram. Errou feito, mas as previsões são feitas para darem mesmo errado. Em janeiro, ninguém lembrou do centenário de nascimento de Greenberg. No ano passado, quando entrevistei Leo Steinberg para o Estado, por ocasião do lançamento brasileiro de seu livro Outros Critérios, o crítico ficou surpreso por alguém ainda lembrar dele. O nome de Steinberg é evocado por Tom Wolfe em A Palavra Pintada apenas para ser acusado de formular um axioma - o de que a grande arte versa sobre a arte - para justificar as "apropriações" dos artistas dos anos 1950 e 1960, empenhados em transferir a meca da modernidade da Europa para os EUA. O movimento expressionista abstrato, diz, não passou de uma estratégia política para colocar Nova York no mapa das artes do pós-guerra. Em seu livro, Wolfe diz ainda que o expressionismo abstrato apenas reciclou o modernismo inicial europeu e que a arte pop não passou de um comentário do expressionismo abstrato - segundo ele, uma relação "incestuosa", questionando se não haveria nisso "algo ligeiramente tacanho, sectário’’.

 

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Bois, que escreveu A Pintura como Modelo em 1990, se encarrega de responder. Ele reprova a interpretação de Wolfe. Não compartilha nem da sua ironia nem da trágica previsão do crítico Arthur Danto sobre o fim da arte. Tampouco acredita em pós-modernismo, contestando a importância dada pelo mercado a artistas cínicos como Jeff Koons e Damien Hirst, "bons comerciantes", segundo Bois. "Minha interpretação do modernismo está, sim, ligada ao mito da morte da arte, mas, como estruturalista, devo dizer que o projeto do modernismo não teria funcionado sem esse mito apocalíptico." Bois lembra que Mondrian, o grande renovador da pintura europeia, a quem dedicou vários estudos e de quem foi curador de uma retrospectiva, tinha plena consciência de que sua pintura "se diluiria na esfera da vida" , ou seja, que morreria para renascer de outra forma, em outro lugar, como profetizou o escritor austríaco Robert Musil (1880-1942).

 

Tom Wolfe, segundo Bois, agiu de maneira "desonesta" ao generalizar e atribuir o caráter fetichista da mercadoria às obras de arte produzidas pelos expressionistas abstratos. A burguesia americana não erigiu um panteão museológico ao seu próprio poder de compra. Comprou os trabalhos de Pollock e Warhol por reconhecer neles algo que faltava num simples readymade de Duchamp, defende o crítico, contestando Wolfe sobre o "teorismo" - a obrigação de ser teórico - dos críticos da geração de Greenberg. "Devo dizer, como aluno de Roland Barthes, que Wolfe está totalmente equivocado, pois não se ‘aplica’ uma teoria." Opositor da leitura iconológica da obra de arte, ele, além de formalista, é um modernista irredutível, no sentido de acreditar que uma peça contemporânea está historicamente ligada ao passado.

 

Para Bois, o papel da crítica, hoje, diminuiu. "Não creio que o crítico seja mais importante para o mercado." Talvez um historiador. Em seu livro, ele lembra a lição do marchand Daniel Henry-Kahnweiler (1884-1979), galerista alemão de Picasso e Braque e primeiro teórico do cubismo, para desmontar a tese de Wolfe. O jornalista americano defende que, na época dos dois pintores cubistas, bastava a um artista produzir obras "que intrigassem ou subvertessem a confortável visão burguesa da realidade" para garantir seu sucesso. Bois mostra que, ao contrário, Kahnweiler, pioneiro editor de Apollinaire, batalhou junto à mídia para dar explicações sobre a obra de Picasso e Braque e conquistar o público leigo. "O mais importante é que Kahnweiler tinha uma teoria", arremata Bois. E Tom Wolfe? Passa bem, obrigado. Acaba de ganhar US$ 7 milhões por sua quarta novela, Back to Blood, que fala de imigrantes.

 

Pontos de vista de cada um:

Clement Greenberg: "Ele usou o sucesso avalizado de Pollock para afirmar a integridade do plano do quadro. Greenberg não descobriu Pollock nem criou sua fama, como posteriormente se disse muitas vezes."

Leo Steinberg: "Atacou o expressionismo abstrato exatamente porque estava dizendo que havia encontrado algo mais novo e melhor, a arte pop."

Arte Pop: "Era, do princípio ao fim, uma afirmação irônica, artificial, intelectual-literária da banalidade, da idiotice, da vulgaridade, et cetera da cultura americana."

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Teorias: "Nenhuma das pinturas expressionistas abstratas que restou daquela época florescente de 1946 a 1960 pode ser considerada um monumento tão perfeito ao período quanto as teorias. Teorias? Eram bem mais que teorias, eram construções mentais."

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