Eco nos parecia a mais inconsútil mistura de McLuhan e Roland Barthes. Com ele aprendemos uma nova forma de pensar a cultura, a sociedade de massas, a filosofia, a literatura, até uma nova maneira de ler e interpretar as histórias em quadrinhos (ou fumetti, como as chamam na Itália). De uma erudição sem pedantismo e salutarmente temperada pelo humor, o versátil sábio do Piemonte descansava de suas lucubrações semióticas fazendo paródias e pastichos (de Lolita, Shakespeare, D’Annunzio, do Nouveau Roman francês) e analisando fenômenos presumidamente fora do alcance de seu radar, como a atriz pornô La Cicciolina. Nada parecia alheio ao seu olhar e indigno de sua avaliação crítica.
Estimulado por seus artigos sobre Snoopy, Super-Homem e outros personagens dos comics é que me aventurei a escrever sobre histórias em quadrinhos, no jornal Correio da Manhã, por volta de 1965. Devorei Obra Aberta assim que a Du Seuil traduziu-a na França, encarei Apocalípticos e Integrados em italiano mesmo, e só tirei férias dele na fase dos romances, abrindo uma exceção para o recente e irresistível Número Zero. Ao colunista mantive fidelidade até o fim. O que vale dizer que não só devorava como arquivava La Bustina di Minerva, a coluna semanal que ele assumiu no L’Espresso quando o jornalão, há exatos 31 anos, assumiu o formato revista.
Singular rubrica: Minerva era a marca de uma caixinha (bustina) de fósforos, talvez a mais popular da Itália na época. Sempre havia uma no bolso dos fumantes para anotar telefones, lembretes e ideias para um ensaio ou romance. Eco fumava. E anotava à beça. Zeno Cosini, o paradigmático tabagista de Italo Svevo, na certa usava outra marca.
A Bustina foi seu espaço mais popular de meditações e digressões sobre os problemas do mundo contemporâneo, da sociedade italiana (terrorismo, corrupção, Berlusconi, imprensa venal, etc., em boa parte condensados no imbróglio ficcional de Número Zero), das ameaças ao livro e à leitura na era da internet, arriscando-se vez por outra em previsões nada otimistas sobre o terceiro milênio (recessão de inteligência, inflação de idiotas) e em exercícios lúdicos e instrutivos, por ele chamados de “divertimenti” e “raccontini”, que ganharam os currículos escolares italianos e mereceram uma tese acadêmica na França. Parte desse material foi compilada no segundo volume de Diário Mínimo e em outra coletânea recém-editada na Itália.
Tentei encontrá-lo durante a Mostra Internacional de Quadrinhos de Lucca de 1969, mas tive de me contentar com a amizade de Hugo Pratt, o criador de Corto Maltese, o que, convenhamos, não é (ou foi) pouca coisa. Eco ficou para a década seguinte. Com a pauta agendada para Lucca. Falou-me dos primeiros gibis de Dick Tracy e Ferdinando Buscapé, coloridos e com um cheiro inebriante, que lhe apresentou um G.I. negro chamado Joseph, quando as tropas americanas ocuparam o Piemonte, em 1945, e dos fumetti do herói fascista Dick Fulmine, sobre o qual publicara um texto, creio que na revista Linus.
Não nos encontramos no Brasil, embora ele aqui tenha vindo algumas vezes. O Brasil, aliás, foi o primeiro país fora da Europa que visitou na vida: em 1966, para dar aulas na Faculdade de Arquitetura da USP, a partir dos ensaios de A Estrutura Ausente. Ciceroneado pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, que conhecera num café romano, dois anos antes, Eco visitou Volpi, comprou um quadro do naif paulista Neuton de Andrade, fez a ronda noturna na companhia de Giuseppe Ungaretti (de passagem por São Paulo, onde vivera e ensinara literatura italiana entre 1937 e 1942) e Andrea Bonomi, seu velho companheiro na Editora Bompiani, adorou as esticadas no João Sebastião Bar (histórico reduto da bossa nova na Pauliceia, na rua Major Sertório) e até visitou um terreiro de macumba, levado pelo físico Mário Schenberg.
Apesar da ditadura militar, encantou-se com o País, impressionou-se com nossa “complexa cultura antropofágica” e a qualidade dos intelectuais da terra (“bem melhores que seus políticos”), mas só arriscou voltar com a família 13 anos mais tarde, sem os milicos no poder. Viagem estafante. Num mês fez cem conferências e ainda arrumou tempo para conhecer parte do Norte e do Nordeste. Não escondeu sua decepção com o crescimento vertiginoso de São Paulo e a contaminação das escolas de samba cariocas pela TV e o “estilo musical da Broadway”. Aos irmãos Campos confidenciou ter iniciado sua primeira experiência ficcional (O Nome da Rosa) e é provável que lhes tenha falado sobre a moça negra que viu entrar em transe num ritual de candomblé, episódio posteriormente incluído num capítulo de O Pêndulo de Foucault.
Das mil e uma histórias que tinha para contar (várias delas diluídas nos capítulos iniciais de Viagem na Irrealidade Cotidiana), a que me falou mais de perto foi sua casual aparição no filme A Noite, de Antonioni. Numa cena rodada no escritório da Bompiani, em Milão, Eco, então com 29 anos de idade e ainda milhares de fios de cabelo, aparece ao lado de Jeanne Moreau, enquanto o escritor encarnado por Marcello Mastroianni dá atenção a um círculo de admiradores.
Originalmente ele recepcionava Moreau na porta de entrada e, com falas improvisadas sem registro sonoro, dizia à personagem: “Muito prazer, gostaria que apresentá-la aos meus amigos Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Madame Lafayette”. Moreau respondia com um protocolar “enchantée”. A cada repetição exigida por Antonioni, Eco identificava os amigos com nomes diferentes: Sartre, Kant, Safo. Na quarta repetição, ao ouvir o nome de Maurice Merleau-Ponty, a atriz arregalou os olhos e perguntou: “Você também conhece ele? Maurice é muito amigo meu”.
Essa troca de diálogos ficou na sala de montagem. Na versão final de La Notte, Eco é apenas visto em duas tomadas, como um modesto figurante, ali por volta do 24.º minuto. Tem no YouTube. Confira.