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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O que Jesus pensava?

Deveria sentir certa melancolia ao saber que os que gritavam 'hosana' berrariam 'crucifica-o'

Atualização:

O que se passava na cabeça de Jesus na quarta-feira da Semana Santa? Havia experimentado a maior glória da sua vida no domingo anterior. Ele fora saudado com hosanas ao filho de Davi! A cidade o recebera como um herói. A sagrada e tumultuada Jerusalém abrira suas portas de par em par. Mantos foram estendidos no chão, ramos de oliveira agitados em frenesi. Foi o apogeu de uma carreira de três anos. Ele conhecia a cidade há muito tempo. Perdeu-se nela aos 12 anos. Jerusalém, a dourada, com o templo refeito por Herodes, o Grande, deveria impressionar um homem nascido em Belém e criado na pacata Nazaré.

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Jesus amava a cidade santa. Em Lucas 19, 41, lemos que ele chorou ao ver a cidade e antecipar sua destruição. Era uma paixão de verdade: sua maior crise de fúria tinha sido expulsar vendilhões do espaço sagrado. O gesto indicava seu zelo afetivo pelo lugar. Ninguém reconheceria o dócil pregador do Sermão da Montanha virando mesas e gritando. Talvez os íntimos conseguissem vislumbrar além: a cena impactante nascia do amor do Filho pela casa do Pai.

Quarta-feira, mês de Nisã no calendário judaico, primavera na cidade santa. Dias mais frescos, céu azul, a temperatura mais amena de uma cidade alta. Como supomos que ele tinha capacidade de saber o que estava à frente, deveria existir um pouco de melancolia em relembrar que alguns dos que o saudaram do Domingo de Ramos estariam entre os que gritariam Barrabás na mesma semana. As mesmas bocas do “hosana” berrariam “crucifica-o”.

Era a semana de Pessach, da celebração judaica que lembrava a libertação da escravidão do Egito. Haveria uma ceia com os amigos. Isso ocorreria amanhã, Quinta-Feira Santa no calendário católico, quinta de endoenças na tradição portuguesa.

No fim do século 15, Leonardo da Vinci canonizou a santa ceia como um ambiente centralizado, com 13 homens, sem empregados ou mulheres (Convento de Santa Maria delle Grazie, Milão). Jesus anuncia que alguém vai traí-lo. O afresco mostra o espanto geral. Judas segura um saco de moedas e derruba sal, sinal de azar. Cem anos mais tarde, Tintoretto ampliou a cena no quadro A Última Ceia (Basílica de San Giorgio Maggiore, Veneza). Há funcionários, cachorros, anjos, louça sendo lavada. Passamos do mundo ordenado de Leonardo para uma rave.

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Na última ceia, Jesus diz algo comovente: eu desejei ardentemente comer esta ceia pascal antes de padecer (Lc, 22-15). É uma frase muito humana de compartilhar mesa e afeto com quem se ama antes do fim. Aqueles eram os 12 homens que o acompanhavam havia anos. Alguns tinham gênio complexo. Tiago e João eram chamados de “filhos do trovão” pelo temperamento. Pedro era decidido e líder, mas negaria três vezes o Mestre na madrugada seguinte. Mesmo Judas estava ali. Talvez o Mestre tivesse uma dor dupla com seu tesoureiro: sabia que ele iria traí-lo, mas sabia que ele cometeria suicídio, o grande tabu judaico. Qual das dores mais incomodava ao Nazareno? Ser traído pelo discípulo-amigo ou perceber que Judas se condenava à danação? Era uma noite de emoções intensas. Os Evangelhos nunca narram Jesus sorrindo, mas descrevem inúmeros momentos do Messias chorando.

Uma das virtudes de Jesus era a capacidade de surpreender. De repente, para espanto geral, Ele se levanta e começa a lavar os pés dos discípulos. Quer mostrar o grau de amor heroico que reverte hierarquias. Quem comanda é o primeiro servidor dos comandados. A lição é permanente e ainda não aprendida. Pedro, sempre cheio de arroubos teatrais, pede para ser lavado por completo. Jesus deve ser paciente. O pescador de homens está em formação. Pedro é um herói ainda imperfeito, que afunda na água quando tem medo, que nega o Mestre, que cochila enquanto Jesus agoniza e que, ao final, vira a pedra sobre a qual toda a obra seria edificada. Pedro, a “pedra”, é humano. Jesus não escolheu anjos, mas seres humanos. Conhece seus discípulos e, curiosamente, ama-os do mesmo jeito. Amar conhecendo é um dom único e uma generosidade épica.

A cena mais tocante da última Páscoa de Jesus é dada pelo afeto de João, o mais novo. Ele pousa a cabeça no peito do Mestre. É o benjamim do grupo e será o último a morrer. Ao redor daquela mesa estavam sentados o tema principal e cinco autores do Novo Testamento: Mateus, João, Pedro, Tiago e Judas Tadeu. Foi um encontro notável. Gosto de imaginar que, ali perto, numa cerimônia mais ortodoxa, estava o maior autor individual do Novo Testamento: Saulo de Tarso, sem saber que sua vida seria mudada pelos acontecimentos que transcorriam no Cenáculo. A ceia foi a última alegria de Jesus nas terríveis horas seguintes.

Como funciona a cabeça de alguém que sabe o futuro? Eu me casaria tendo presente todos os desentendimentos futuros? Conversaria com alguém que me causaria decepção anos mais tarde? Talvez por isso seja vedado aos homens o conhecimento do futuro. Não aguentaríamos a dor da verdade pela frente.

James Jacques Tissot (1836-1902) retratou o Calvário sob ângulo novo: a cena vista pelos olhos de Jesus (Ce Que Voyait Notre-Seigneur Sur la Croix c. 1890. Brooklyn Museum, Nova York). Procure essa imagem e você será apresentado a uma interpretação pouco comum. Em vez de um Jesus centralizado, um que não está na cena (a não ser por um detalhe dos pés), entretanto, determina o horizonte de visão. Assumimos a posição dEle. A morte na cruz era excruciante pela dor; terrível pela humilhação de tormento típico de escravo e, para piorar, era a chance para o Messias avaliar a natureza humana que não cessa de surpreender pela pusilanimidade. Somos todos canalhas e, invariavelmente, covardes. E Ele amou os homens apesar do que via. Boa Semana Santa.

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Opinião por Leandro Karnal
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