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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|O que eu vejo das margens plácidas

Canto para esta pátria amada, idolatrada, salve, salve, encontrar seu rumo

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Atualização:

Confissão dramática de idade: fui professor de Educação Moral e Cívica (EMC) e de Organização Social e Política Brasileira (OSPB). Um dos itens do programa era o Hino Nacional Brasileiro. Educado em escola tradicional, cantávamos com frequência. Com a obrigação profissional de ensiná-lo aos alunos, virei um estudioso da letra e da música. 

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Os versos de Joaquim Osório Duque Estrada, todos sabemos, guardam seus compromissos com o fim do século 19: anástrofes e hipérbatos (inversões leves ou mais fortes da ordem natural das palavras) e uma análise sintática desafiadora. A ordem direta e o horror a orações subordinadas viriam depois, bem depois. O vocabulário do Hino Nacional Brasileiro é como o latim da missa: constitui um tom solene que não demanda compreensão plena, apenas zelo pelo sagrado. Cantávamos “Ouviram do Ipiranga” como rezávamos o Salve Regina: sem entender tudo, apenas crendo que fosse sinal de algo maior. 

A música de Francisco Manuel da Silva é bela, todavia constitui um enorme obstáculo para o grande público. A partitura tem muitas armadilhas. Quando ouço uma plateia cantando, percebo que as arapucas são eficazes. Muitos caem nas emboscadas. A introdução vibrante e marcial já parece anunciar: cuidado, eu, a letra, venho chegando. Preparem-se! Vocês já estão de pé e em posição de respeito, mas irei desafiá-los! Aí vem a primeira cilada: as notas têm pequenos pulos: as colcheias são pontuadas. A palavra plácida já é difícil, no entanto, quando cantamos em fá maior (versão oficial para canto de Alberto Nepomuceno), o “plá” vai perder o bemol e será cantado de forma natural. Isso confere grande beleza e variedade à música e, em contrapartida, sepulta a chance de êxito diante do grande público patriótico e aumenta a chance de o “plá” sair desafinado. Não é à toa que os versos que caem em uma sequência de notas sem “pulos” ou que apresentam uma sílaba por nota são sempre cantados com muito mais força: “Ó Pátria Amada, Idolatrada, Salve, Salve!”. Até quando se louva, há arapucas. Muita gente já disse: adoro nosso hino, criando o cacófato “nossuíno”. 

Novas armadilhas de sequência poética. Na primeira parte “em teu seio” e, na segunda, “no teu seio”. Palavras, palavras, palavras, como exclama o príncipe Hamlet. O vocabulário é parnasiano: fora do hino, qual foi a última vez que você utilizou o termo garrida? Já elogiou a namorada como bem garrida? Já aplaudiu o sol de Ipanema por apresentar-se fúlgido? Já saudou o lábaro do Corinthians? Não houvesse a pena do acadêmico Osório Duque Estrada e essas palavras estariam na jaula a que Monteiro Lobato condenou vocábulos em desuso. 

O hino brasileiro é um símbolo nacional (um dos quatro previstos na Constituição) e, como tal, tudo nele é resguardado pela forma jurídica. Não podemos inventar muito ao cantar: é ilegal. Uma cantora de inspiração jazzística nos EUA pode abrir o jogo interpretando livremente o andamento: “Oh say, can’t you see”. O verso inicial pode durar muito. O mais perto que chegamos disso foi com Fafá de Belém por ocasião da morte de Tancredo Neves (1985). A cantora amazônida transformou a marcha em um solene canto fúnebre. Ficou lindo, entretanto, rigorosamente, ilegal. 

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Hinos são símbolos. O canto congrega e constitui unidade. Sem alguns consensos não conseguiríamos construir uma sociedade, perderíamos identidade. O hino tende a transcender a subjetividade de cada um. Os militares cantavam o Hino Nacional. As manifestações das Diretas Já cantavam o Hino Nacional. Há uma gramática mínima que deve estar sob nossos pés para que o País continue existindo. Sendo um signo aberto, o hino permite que cada um faça sua leitura. Chegamos a uma questão dramática. Toda a lógica do texto parece indicar que encerrarei com um tradicional apelo patriótico. Muitos leitores, especialmente os mais velhos como eu, dirão: “Precisamos de mais civismo e patriotismo, antigamente se cantava o Hino Nacional. Os alunos não cultivam mais os valores cívicos!”. Não estou convencido de que o patriotismo, dependendo de como construo seu conceito, seja um valor em si. O nacionalismo é um fenômeno também do século 19 e está na base da Grande Guerra de 1914-1918. A ênfase na identidade dada pelos símbolos está muito colada a regimes totalitários como o fascismo italiano e o nazismo alemão. As piores coisas do mundo já foram feitas em nome dos interesses da pátria. Reforçar muito a fronteira do nacional também implica afastar-me do resto da humanidade. 

Uma solução boa para tais dilemas está na reflexão de Mahatma Gandhi. Ele viveu o drama de discursos nacionalistas e seus custos para a Índia. Dizia que queria sua casa indiana, mas aberta e com janelas para o mundo. Minha identidade, adaptando, é brasileira, isso não a torna melhor ou superior a ninguém, apenas é a minha. Nasci e cresci neste país, falo português, compartilho gostos e história com mais de 200 milhões de outros seres humanos. Nada me faz superior ou inferior a um paraguaio ou a um francês, tudo me torna brasileiro. Parte do processo está ligada às margens do Ipiranga. Para todo o resto do planeta será o riacho que é: pequeno, hoje poluído, sem graças notáveis. Para mim serão as margens plácidas que constituem o sujeito da pergunta “quem ouviu o brado retumbante”? O hino e a bandeira são parte do meu sujeito também. Por isso canto, com entusiasmo, o Hino Nacional Brasileiro. Tenham um pouco de paciência com essas coisas antigas, fui professor de Educação Moral e Cívica. Quero meu país aberto e em paz com todo o mundo, porém, continuo sendo brasileiro, apaixonadamente brasileiro, e canto para esta pátria amada, idolatrada, salve, salve, encontrar seu rumo. Bom domingo para todos!

Opinião por Leandro Karnal
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