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O príncipe ético de Dostoievski

Sai nova tradução de O Idiota, de Dostoievski: Míchkin é o personagem que volta à Rússia, depois de se tratar de epilepsia, e encontra uma sociedade corrompida

Por Agencia Estado
Atualização:

Sobre o autor de O Idiota, o crítico literário Otto Maria Carpeaux escreveu: "Dostoievski sabe perfeitamente o que quer dizer; mas não sabe sempre o que diz." Um tanto retirada do contexto, ela ajuda a pensar a sedução que seus personagens e tramas provocam. Colocada nas livrarias no último bimestre de 2002, uma nova tradução de O Idiota (editora 34, 680 págs., R$ 54), realizada por Paulo Bezerra, já ganhou os prêmios Paulo Rónai e o de melhor tradução de 2002 da Associação Paulista de Críticos de Artes e uma reimpressão. "As questões éticas estiveram no centro de todos os livros de Dostoievski", diz Paulo Bezerra, para completar: "O personagem Míchkin é capaz de realizar julgamentos, diante de cenas terríveis, respeitando sempre o indivíduo." Na opinião de Bezerra, são as tais questões éticas, tão atuais, as responsáveis pelo que ele chama de "verdadeiro renascimento" da obra de Dostoievski - a tradução direta que Bezerra fez de Crime e Castigo, lançada em 2001, teve cinco impressões, e a editora 34 pretende, aos poucos, publicar a obra completa do autor em versões feitas a partir do russo (além do trabalho de Bezerra, o projeto conta com revisões de traduções de Boris Schnaiderman). O príncipe Míchkin, o "idiota" de que trata o título, é, na verdade, um epilético, que, após passar alguns anos em tratamento na Suíça, retorna à Rússia, sem dinheiro nem conhecidos, apenas com um endereço de uma parenta que não lhe respondera uma carta (na verdade, ele reserva uma surpresa a seus interlocutores). A obra foi escrita numa das várias crises da conta de pagamentos de Dostoievski - o dinheiro que toma emprestado para realizar a obra consome no jogo -, também em meio a problemas de saúde e depois do sucesso da publicação de Crime e Castigo. Tais circunstâncias resultaram numa obra escrita, nas palavras de Bezerra, "à queima-roupa", "sofregamente". "Isso se reflete na narração, de intensa oralidade; é como se fosse um texto não burilado, saiu assim, numa explosão criativa, como a água de um riacho brotando." A doença de Míchkin parece fazer, para o tradutor, com que ele busque ir ao fundo de todas as questões de que trata, quando começa a falar, dando a impressão de uma certa confusão que marca bem o personagem. No trem que o leva de volta a São Petersburgo, Míchkin encontra Rigójin, numa dessas coincidências tão difíceis de acreditar que o próprio autor alerta e como que se desculpa - como só os grandes têm coragem de fazer - pelo recurso aparentemente simples de que se utiliza: "Se ambos soubessem um sobre o outro, o que os fazia dignos de nota particularmente neste instante, iriam, é claro, surpreender-se com o fato de que o acaso os havia colocado frente a frente e de modo tão estranho em um vagão de terceira classe do trem da rota Petersburgo-Varsóvia." Míchkin, ao chegar, mergulhará no meio de uma grande crise familiar envolvendo Rigójin e a bela Nastácia Filíppovna, protegida de um general. A compaixão humanista de Míchkin, a beleza de Nastácia e o desregramento de Rigójin formam o triângulo que conduz as tramas da obra. Míchkin, ele próprio nos conta por meio de seu diálogo no trem, é virgem - decorrência de sua precária saúde. E, como deixou claro Dostoievski na correspondência da época em que escreveu a obra (1868), é inspirado em Cristo e em D. Quixote. Míchkin é capaz de enxergar os defeitos das pessoas, mas se recusa a julgá-las apressadamente e só pelo que têm de pior. "A idéia central do romance é representar um homem positivamente belo. No mundo não há nada mais difícil do que isso, sobretudo hoje", escreveu o autor na carta, citada no prefácio de Paulo Bezerra. Um cenário que bem expressa essa dificuldade é o do momento do desenlace da primeira grande trama do livro: num jantar em que Nastácia deve anunciar que aceita se casar com Gánia Ívolguin (que sonha com seu dote de 75 mil rublos), os convivas decidem participar de uma espécie de jogo da verdade, revelando o que de pior fizeram na sua vida, em termos éticos. Há um desejo literário expresso, que lembra, de certo modo, as rodas de histórias do Decamerón, de Boccaccio. Só que o resultado é símbolo da decadência enxergada por Dostoievski: em vez de risos e alegrias, os relatos provocam, um após outro, mais e mais mal-estar, até que Nastácia decide, por fim, realizar ali sua grande traição. E estamos ainda na primeira parte do romance. O príncipe, apesar da fragilidade, tudo observa, mas não apenas isso, também intervém. Sua chegada é também uma revelação filosófica, ética e política. Já em Petersburgo, trava uma conversa em que defende pontos de vista sobre temas que mobilizavam seu tempo: faz uma contundente crítica à pena de morte, descrevendo o rosto de um condenado à morte no minuto que antecede a execução e sugerindo a uma jovem que o pinte. Como lembra Carpeaux, no texto já citado, Ensaios de Interpretação Dostoievskiana, "a literatura russa do século 19 é profundamente política". "O país não tem imprensa nem tribuna, nem mesmo cátedras livres, e a literatura é a única voz do povo, em plena evolução política e social. Todas as coisas, a ciência, a própria ideologia, estão impregnadas de política." Uma das questões centrais de O Idiota é a disputa em que se engalfinhavam os partidos russos, divididos entre uma modernização "ocidentalizante" e a busca de um caminho próprio eslavo (defendido por Dostoievski). Pode-se ver, aí, uma parte das discussões que hoje se travam em torno da globalização. Dizer que ele antecipa o movimento de hoje talvez seja um anacronismo histórico: o que combatia era mesmo o avanço de uma desregrada moral capitalista importada da Europa, num contexto que na época recebia o bom nome de imperialismo. Não por acaso, é um russo, o comunista Nikolai Bukharin, quem melhor vai descrever o processo que descambou na 1.ª Guerra Mundial - mas isso é outra história, ainda que os líderes bolcheviques nunca tenham deixado de ler e admirar Dostoievski.

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