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O poeta dos 1001 amores

Por Humberto Werneck
Atualização:

Pode ser que eu, sem me dar conta, tenha topado com Jésu de Miranda, o Poeta Soldado (ele gostaria dessa rima). É até bem provável, pois, no acanhado carrossel dos bares, cafés e livrarias da Belo Horizonte de meio século atrás, você topava com todo mundo, quisesse ou não. O fato é que só muito mais tarde fui tomar conhecimento da existência de Jésu, personagem da periferia da literatura que durante um tempo desfrutou de notoriedade municipal, nem sempre pelos sonetos que produzia aos borbotões. Hoje apagado até do folclore literário, chegou a merecer atenção de confrades graúdos como Monteiro Lobato, ou Vinicius de Moraes, para quem estava “longe de ser mau sonetista”. Quem primeiro me falou de Jésu de Miranda foi outro poeta, Hélio Pellegrino, que não precisava de muito uísque para tronitruar em tom hilariante o decassílabo de abertura do soneto Eu, a seu ver perfeito: “Nasci em Guaxupé, no Sul de Minas!”. Hélio guardava com avareza de bibliófilo seu exemplar de Veritas Veritatis, e, quando Fernando Sabino pediu emprestado, não obteve mais que um xerox. Do qual fez bom uso, seja dito, pois o poema comparece, na íntegra, como “joia do soneto”, em O Grande Mentecapto, na voz do maluquinho Geraldo Viramundo.  O romance de Sabino saiu em 1979, meses depois da morte do Poeta Soldado, assim chamado por ter pertencido aos quadros da Polícia Militar. Tinha 69 anos e seu desaparecimento passou de raspão pelo noticiário. Sobre o túmulo, a família pôde finalmente colocar a lápide que ele mandara fazer com larga antecedência, na qual se le o soneto Meu Epitáfio: “Aqui jaz o cantor da própria sorte, / que no mundo só teve a triste lida: / cantar, chorando, até chegar a morte”.  Foi de fato o que fez: no final da vida, Jésu de Miranda escrevia um poema cujo título, As Jesíadas, dá a medida de sua ambição, e do qual a família não tem notícia. Deixou, segundo o filho e xará, 17 livros, que ele mesmo se encarregava de camelotar pela cidade. O que despertou o interesse de Monteiro Lobato foi Agonia de um Poeta. Com ele, escreveu, o autor lhe “fez o coração abrir-se em lágrimas, diante de seu rio de dores”. Lobato tomou ao pé da letra o verso “Ninguém morrendo padeceu assim” - e, supondo no mínimo uma tuberculose, mandou ajuda de São Paulo. Caiu das nuvens quando, em visita a Belo Horizonte, se deparou com “um mulato mais robusto como nunca pensávamos”. Havia mais: o novo livro do “garimpeiro das rimas agônicas” se chamava As 100 Mulheres Que Eu Amei. “É muita mulher para quem se achava agonizando”, avaliou Lobato. A obra em questão, por sinal, deu temerária fama a Jésu de Miranda, e mais de um marido julgou reconhecer a mulher entre as 100 cantadas nos sonetos. Um deles foi tomar satisfação. “O poeta quis explicar-se”, contou o cronista Moacir Andrade. “Não foi possível. O marido estava irado demais. Engalfinharam-se. Rolaram no chão. E o poeta foi processado e condenado”. Por lesões corporais, o 2º tenente reformado pegou um ano de prisão, pena que não chegou a cumprir integralmente.  “Estou certo de que Jésu não acrescentará nenhuma outra mulher às 100 do livro”, apostou o cronista, naquele momento em que, segundo os gozadores, estaria a caminho uma edição revista, agora com o título As 99 Mulheres Que Eu Amei. Mas qual: 5 anos mais tarde, o poeta reincidiu em dose decuplicada com As 1001 Mulheres Que Eu Amei. “901 novos amores em 5 anos”, contabilizou Moacir Andrade, “seria um recorde universal”.  Na vida real, não se sabe, mas, na poesia, musas voluptuosas reinavam em regime de exclusividade. “Que me condene quem quiser / por eu sinceramente confessar / ser um homem tarado por mulher”, alardeava o poeta. Na chave de ouro do soneto Eu, deixou claro que neste mundo a sua “diversão” consistia em “briga de galos, versos e mulheres”, talvez não nesta ordem. Em outro poema, uma galante tomada de posição: “Quando de amor o coração palpita, / quero mil vezes um milhão de escândalos / do que perder uma mulher bonita”. Chegou a anunciar, num verso alexandrino: “Quero um dia morrer nos braços das mulheres”. A insistência na última palavra lhe custou uma observação sardônica de João Alphonsus: para não perder a rima, o tenente aceitava rebaixar-se a alferes.  Engaiolado, o poeta-soldado sentiu que até para efeitos domésticos era prudente maneirar, e o fez em redondilhas maiores: “Tenham calma, meus senhores! / Vou revelar uma cousa: / o maior dos meus amores / é o amor da minha esposa!!!” O que não o impediu, candidato a vereador, de estender sua campanha a uma zona não propriamente eleitoral, indo pedir voto em redutos de profissionais do sexo. Se arrebanhou apenas 120, quando esperava milhares - decepção que o levaria a escrever mais um livro, A Traição de Meus Eleitores -, não foi por falta de slogan: “Dê de frente, dê de banda, / mas vote em Jésu de Miranda!”

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