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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|O olhar ausente

John Berger era um astro, era popular, mas não um astro pop como os tantos que nos deixaram em 2016

Atualização:

A ilusão de que a Grande Ceifadora reduziria suas atividades no mundo das artes este ano mal sobreviveu ao réveillon. Já no segundo dia de janeiro fomos privados para sempre da presença e dos ensinamentos de John Berger. Ele era um astro, era popular, mas não um astro pop como os tantos que nos deixaram em 2016. Estrela em seu métier (a crítica de arte), o britânico Berger levou seus conhecimentos e sua privilegiada sensibilidade a um público habitualmente pouco ligado em artes plásticas, através de publicações generalistas (New Statesman, The Nation), literárias (London Review of Books), livros, palestras - e, com maior impacto, através da televisão. 

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Não uma emissora qualquer, mas a BBC de Londres. Sua série de quatro programas, Ways of Seeing (Modos de ver), produzida em 1972, depois transformada em livro e há tempos disponível no YouTube, foi um marco na TV, o ponto mais alto do didatismo de massa, da pedagogia televisiva isenta de enfado e concessões ao popularesco. Radicais ensaios visuais sobre as ideologias ocultas nas imagens (de quadros famosos, do cotidiano, da propaganda, etc.), pareciam aulas preparadas a oito mãos por Walter Benjamin, Roland Barthes, Brecht e Erwin Goffman, que Berger ancorava com uma invejável nonchalance, vestido de maneira prosaica, como um professor descontraído num churrasco de fim de semana com seus alunos.

Ways of Seeing surgiu como uma “réplica materialista dialética” à ótima e abrangente série Civilização, de Kenneth Clark, mundialmente consagrada pela BBC três anos antes. Berger era marxista, mas sem a rigidez dogmática de um Ernst Fischer, por exemplo. Observador sutil, eclético e voraz de tudo à sua volta (das obras em museus ao rótulo da aveia Quaker, passando pela Branca de Neve, os filmes de Fellini e os adornos de casas campesinas no Leste Europeu), tinha um olhar astuto e uma autoridade moral e poética como raras vezes se viu. Escrever de forma lúcida e cativante sobre arte, especialmente artes plásticas, em jornais a revistas (“Fazia um ruído insuportável de crítica de arte”, reclamou mais de uma vez, com razão, o poeta W. H. Auden), nunca foi problema para Berger. Nem para o também finado Robert Hughes, minha leitura favorita de todas as semanas na revista TIME. Hughes, aliás, seguiu as pegadas de Berger, com uma esplêndida série sobre o modernismo, The Shock of the New, também disponível no YouTube.

Curioso, intenso, sobremodo atento aos excêntricos e marginais, sempre encantado com a criatividade, o incomum, o inusitado, o provocativo, Berger questionou de forma sistemática a “autoridade” de críticos e comentaristas de arte em geral. Tinha moral de sobra para isso. Jamais frequentou o petit monde acadêmico. Viveu exclusivamente de escrever e falar diante de uma câmera. Viveu e criou, com irresoluta integridade, até os 90.

Uma de suas maiores contribuições iluministas foi dissecar a lavagem cerebral e espiritual que nos impõe a publicidade, cercando-nos de imagens que nos propõem ou prometem um modo alternativo de vida, a suprema balela de nossa era, “sem a qual o capitalismo não sobreviveria”, pois seu principal objetivo é nos forçar a consumir coisas de que não necessitamos. Fez brilhantes observações sobre o “narcisismo estrutural” do homem e as diferenças entre o olhar masculino e feminino, sobre o glamour como produto da inveja, e sobre a misoginia institucionalizada em nossa cultura, desde a narrativa de Adão e Eva, passando pelo tratamento que Rodin dispensava às mulheres. As feministas sentirão muito a sua falta.

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Seus conhecimentos práticos de desenho e pintura o ajudaram a entender os objetos de suas análises com mais rentura e profundidade. Talvez tenha sido rigoroso com Picasso, mas não tanto quanto se imagina - ou apregoam aqueles que, equivocadamente, o consideravam um empedernido antimodernista. Da má vontade inicial com Francis Bacon (comparou-o a Walt Disney) arrependeu-se em tempo hábil. Tratou sem benevolência a arte soviética sob Stalin, a partir da obra e trajetória do escultor Ernst Neizvestny, que não lhe enchia os olhos, mas ajudou-o, com seu exemplo, a iluminar a situação do artista visual na União Soviética e da arte politicamente revolucionária. Dos romances que publicou, conheço apenas o que lhe deu o cobiçado Booker Prize de 1972: G, aqui traduzido pela Rocco. Ficção ensaística à francesa, com poemas, explicações, metáforas e outros bichos, tem como protagonista um Maquiavel sexual cujos atos de sedução soam como uma vingança programada contra a classe dominante. Berger causou um rebu ao dividir as libras do Booker entre os trabalhadores dos canaviais caribenhos explorados pela Booker McConnell Limited, patrocinadora do prêmio.

Com o resto da grana financiou a edição de seu livro seguinte, A Seventh Man: Migrant Workers in Europe, estudo sobre a exploração do “Gastarbeiter” (trabalhador imigrante) da Europa mais pobre e da África pelos países mais ricos do continente. Justapondo texto e fotos (de Jean Mohr), permanece na minha lembrança como uma mistura de George Orwell (O Caminho de Wigan Pier), James Agee (Elogiemos os Homens Ilustres) e Rainer Werner Fassbinder (Todos se Chamam Ali). Por sua espontaneidade diante das câmeras, acabou seduzido pelo cinema. Contracenou com a alemã Angela Winkler em Walk me Home, de Timothy Neat, filmado em 1993 e motivo de um ensaio sobre as peculiaridades da representação cinematográfica, publicado na revista Harper’s. Mais bem-sucedida foi sua experiência como roteirista do cineasta suíço Alain Tanner, em Jonas Que Terá 25 Anos no Ano 2000, pioneiro filme do “gênero” reencontro & lavagem de roupa suja dos anos 60 que influenciaria o John Sayles de Return of the Seacausus Seven, que por sua vez deu a Lawrence Kasdan a ideia de O Reencontro (The Big Chill).

O filme, de que gostei bem na época, é de 1976. Jonas teria hoje 40 para 41 anos. Várias das questões estéticas e sociais com as quais se defrontaria agora - misoginia, consumismo desvairado, imigração, desigualdade social, fanatismo religioso, violência urbana - ou estavam incubados ou já existiam quando ele engatinhava. Captando-as e analisando-as, o olhar percuciente de Berger, cuja ausência, diga-se, não será só sentida pelas feministas.