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Luzes da cidade

O médico e o monstro

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Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Um dos sketches de humor mais conhecidos da televisão americana é a paródia de telejornal Weekend News Update do programa Saturday Night Live, o SNL, da NBC. No sábado, 22 de novembro, o novo "ancora" negro do SNL, Michael Che, olhou para a câmera e disse, "Hey, Bill Cosby, puxe suas calças para cima!" e confessou: "Eu sempre quis dizer isso". O momento é simbólico em várias frentes. No mesmo prédio em que é gravado o SNL, a NBC mudou a história da TV com The Cosby Show, a sitcom de maior audiência no país, de 1984 a 1992. Pela primeira vez, uma família negra de classe média era representada sem condescendência. Cosby era o obstetra Cliff Huxtable, que dispensava bom senso com ironia, ouvia a melhor música negra, de Miles a Stevie, e adorava Claire, sua mulher advogada muito bem-sucedida. Eles tinham cinco filhos e as tramas dos episódios lidavam com dilemas que a América branca conhecia bem.O Dr. Huxtable era o paterfamilias dos americanos numa época em que o tamanho da audiência da televisão ainda permitia que o meio dominasse a cultura popular. A maioria dos negros não tinha vizinhos como os Huxtables. Mas a série foi saudada pela viúva de Martin Luther King, Coretta, como a mais positiva representação de uma família negra na história. O Cosby Show sugeria (falsamente) que o país já havia se penitenciado por seu pecado original, o racismo. Cosby já tinha rompido outra barreira vinte anos antes, com a proibição da segregação racial recém-transformada em lei. Ele foi o primeiro negro coprotagonista de outra série, I Spy, sobre dois agentes secretos disfarçados. Cosby era o intelecto da dupla.A referência de Michael Che às calças do patriarca de 77 anos é o troco por outro papel, o de moralista, que ele assumiu nos anos 1990. Ele saiu pelo país esculachando negros por culpar o racismo pelas mazelas que, dizia, eram fruto de evasão de responsabilidade. Cosby condenava a cultura do rap, a violência, a mania de falar em dialetos, recusando o inglês. Mistura de pastor e comediante, ele contava piadas e exortava: puxem suas calças para cima!, numa crítica aos jeans usados por jovens negros.Os sermões de Cosby provocaram um racha entre sua geração e os novos porta-vozes da cultura negra que não tinham frequentado as trincheiras da luta pelos direitos civis. Ele foi acusado de "culpar a vítima" e de, uma vez multimilionário, dar as costas para seus irmãos.Culpar a vítima é uma tradição conhecida na história da violência sexual.Todo dia, na última semana, o país acorda com uma nova mulher que se diz vítima de abuso sexual do comediante. Já são dezoito, de várias partes do país, ao longo de mais de quarenta anos. Nenhuma delas poderia obter justiça porque o alegado crime sexual já prescreveu. As histórias são semelhantes: envolvem álcool, estranhas pílulas coloridas que tornavam as mulheres grogues ou inconscientes. Há, entre elas, uma avó de 71 anos e os incidentes vão de estupro a variadas formas de abuso sexual. Cosby estava para surfar num grande retorno. Seu show na Netflix foi cancelado, a rede NBC suspendeu a produção de uma nova sitcom que ele deveria estrelar em 2015. Inúmeros locais onde ele faz comédia stand-up 60 vezes por ano estão cancelando os shows.Mas o que ouvimos agora começou se tornar público em 2004, quando uma canadense moveu um processo e seu advogado encontrou 13 outras mulheres dispostas a denunciar o comediante. O promotor não encontrou provas materiais para acusação criminal e Cosby pagou uma indenização à autora do processo. Até a revista People noticiou o caso. Mas quem queria viver num país onde o amado Dr. Huxtable é um estuprador serial? O que mudou? Muito. Mas algo parece continuar igual: foi um homem que ressuscitou as acusações. Um comediante negro lembrou o caso num clube e o vídeo de celular se tornou viral. Assim, as mulheres começaram a ser ouvidas.

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