O caco como cultura

Excerto é sinônimo de trecho ou fragmento, parte de um texto maior. É uma seleção do todo, algo que recortamos com determinado objetivo. O excerto facilita, mas é tijolo de um muro maior. 

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Por Leandro Karnal
Atualização:

Sempre cultivamos o excerto. Para fins didáticos e de compreensão, o extrato funciona muito bem. Na Grécia antiga, os coletadores de ideias eram chamados polímatas, termo que, depois, foi associado ao dono de um saber universal. No século 12 da Cristandade, Pedro Lombardo compilou quatro livros de sentenças (Libri quattuor sententiarum), um manual de citações bíblicas e de teólogos. A obra alcançou imenso sucesso nas nascentes universidades ocidentais. O texto ajudou a definir o modelo de professor usual da Baixa Idade Média: um comentarista de pequenos trechos, alguém capaz de inserir cada frase num contexto maior e encontrar nexos entre ideias esparsas.

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As frases de Pedro Lombardo têm muitas vantagens. A maior é que, com menos esforço, permite ao leitor conhecer mais autores. Ler a totalidade dos escritos de Agostinho é tarefa penosa. A Bíblia é vasta. Os excertos possibilitam, em poucos momentos de leitura, fazer um voo panorâmico por muitas fontes. Os pedaços selecionados trazem ao leitor a possibilidade do acesso mais rápido e eficaz. É um atalho para um conhecimento, mas, talvez, não para o conhecimento. 

Há lacunas irreparáveis no processo. A citação é sempre uma parte. Ela omite a construção da ideia feita pelo autor. O trecho recorta, esfarela e joga uma migalha ao leitor incauto. Outro problema: coletâneas de frases elidem um autor oculto, como o artista ao escolher determinadas pedras para compor o desenho do mosaico. Pedro Lombardo elabora um sistema teológico só com frases alheias. A unidade, porém, é dada pelo coletador. Quem cita, seleciona. Se alguém contesta a validade do trecho, o polímata pode afirmar: é a Bíblia! É argumento de autoridade, infalível. O excerto oculta o vulto de um autor que não está enunciado. A citação pode claudicar por incompletude. “Deus não existe”, assegura o salmo 53. Sim, meus piedosos leitores, está na Bíblia: DEUS NÃO EXISTE. Porém, o versículo seguinte (ou, dependendo da tradução, o prévio) esclarece: “Diz o insensato no seu coração”. Acabamos de ver um exemplo de má citação. Mesmo que o citador seja bem-intencionado, todo recorte se aproxima dessa contradição. 

Ao resumir e ao citar, tenho de deixar uma moeda de imposto no altar da traição. Se usei um pequeno trecho traduzido de outra língua, o imposto dobra de valor. O autor mais insuspeito passa por esse trajeto. Os fariseus eram experimentados intérpretes da lei. Para testar Jesus, fizeram a pergunta sobre a síntese de toda a Bíblia. O Mestre respondeu que deveríamos amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. (Mateus 22, 37-40). Ora, a síntese (derivada do pensamento do rabino Hilel) omite coisas importantes, como a lei do olho por olho e do dente por dente (Talião). Ao resumir, Jesus contraria ou supera tradições fundamentais da Lei Mosaica.

Eu, ao sintetizar os versículos do evangelho, passei por cima de uma sutileza importante: a ordem de amar a Deus de todo o coração, alma e pensamento (distinção fundamental na ideia). Também, ao fazer o excerto da afirmação de Jesus, deixei de inserir a passagem seguinte, que define a figura do Cristo, o título teológico que define a autoridade capaz de ir além da lei mosaica. Por fim, citei em português uma frase que teria sido dita em aramaico, traduzida para o grego e, depois, para o latim para chegar, enfim, ao idioma de Camões. Isso foi só para exemplificar o que significa citar e fazer excertos.

Há muitas moedas no altar da traição. A cultura ocidental foi se democratizando do ponto de vista numérico. A comunicação contemporânea acelerou o excerto. Trechos apócrifos, ou seja, de autoria falsamente atribuída, circulam como legítimos filhos da pena de Shakespeare ou de Jorge Luis Borges. Arnaldo Jabor já rejeitou a paternidade de muitos que circulam no cyberspace.  Faço palestras sobre grandes obras como Hamlet. Logo em seguida, vejo frases do príncipe atribuídas a mim. Como afirmei que “a consciência nos torna covardes”, vejo a frase brotar de todos os lados, atribuindo a autoria a este colunista. Pobre bardo, acabou no Irajá!

A bibliografia de um curso superior é, quase sempre, uma coletânea de capítulos variados, raramente um livro completo. Versos de Fernando Pessoa viram trechinhos de uso cotidiano. Versículos bíblicos transmutam-se em pílulas extraídas do contexto. Para piorar, a partir de uma pequena frase de um vídeo, os leitores rápidos enquadram o autor em gavetas. Matizes são ignorados e contradições aplainadas. Somos o mundo do excerto, a civilização do caco, o universo do fragmento. Somos a época na qual a viagem da parte ao todo está em colapso. O caco é o todo. Surge um universo de caleidoscópio com a beleza fátua definida por espelhos de ilusão. Bem-aventurados os que ainda encaram um livro completo. Bom domingo a vocês.

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