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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Nós, vagabundos

O novo político tirará do currículo frescuras como filosofia, geografia e história

Atualização:

Já é clássica a tira em que um ET, ao colocar os pés na Terra, pede: “Leve-me ao seu líder”. Se pousar nos Estados Unidos de hoje, escutará: “Tem visto? Que sobrenome é esse, de origem iraniana? Tem ligações com extremistas? Qual o motivo da sua viagem? Está com a reserva da volta agendada? Onde ficará hospedado? Traz um valor superior a US$ 10 mil? Lida com gado?”.

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Se pousar no México, escutará: “Qual líder, o do lado de cá ou o do lado de lá daquele muro? De algum cartel?”. Se pousar no Reino Unido, escutará: “Desculpe, as fronteiras estão fechadas, retorne ao seu ponto de origem”. 

Se vier ao Brasil de hoje, escutará um desanimado: “Não temos, tente outra localidade. Já tivemos, e dos bons: agregadores, populares, sábios, bons de prosa, de discurso, de debate, seresteiros, pacifistas, tolerantes, com projeto, que identifica o brasileiro como seu verdadeiro patrão, e seu cargo a serviço do povo, pelo povo, para o povo, cujo mandato teve início, meio e fim. Agora... Posso tomar conta da nave?”. 

Um novo tipo de político tem acusado adversários de vagabundagem. Adversário aposentado que o questiona? Vagabundo! O que é um paradoxo, pois, se aposentado, provavelmente trabalhou por décadas e pode agora desfrutar uma merecida... vagabundagem.  O novo político é contra greves, direito constitucional (Lei 7.783) que rompeu em 1989 com uma das proibições mais simbólicas de regimes autoritários e assegurou “o direito de greve, competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender” (Art. 1.º), e considera “legítimo exercício do direito de greve a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador” (Art. 2.º).

Passaram a chamar quem se manifesta contra a reforma trabalhista de vagabundo. Outro paradoxo: se protestam contra leis que mudam a CLT, é porque provavelmente têm um T, estão organizados em categorias, provavelmente são sindicalizados, cujos sindicatos provavelmente pertencem a uma central de trabalhadores, única ou geral.

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Líderes democráticos de hoje são desbocados. Acreditam que movimentos sindicais ou organizações estudantis são aglomerados de vagabundos. Acreditam que a ideologia de esquerda é uma carta secreta enviada por satã. 

Acreditam que não temos a aprender com a História, e que tudo deve ser reescrito, já que intelectuais acadêmicos são deturpadores defensores do método didático da lavagem cerebral, doutrinadores que seguem cartilhas de outros vagabundos, e vivem à custa de bolsas que financiam suas vagabundagens aqui, disfarçadas em pesquisas acadêmicas, ou, pior, fora do Brasil, com bolsas que sustentam suas famílias de vagabundinhos.

Se não são financiados por bolsas de pesquisa, são por programas sociais, que não ensinam a pescar, mas dão o peixe pronto, cozido e temperado, o que leva à vagabundagem. Para a nova política, artistas também são vagabundos. O pessoal de teatro, além de sexualmente degenerado, socialmente inepto, sintomaticamente insano, vive de bolsas de incentivo cultural, uma lagosta cozinha e já temperada. 

O pessoal do cinema, que produz pornografia disfarçada de cultura, ou “cult”, como eles gostam, tem uma lei própria, a do Audiovisual (Lei Federal 8.685/93), e uma agência própria, a Agência Nacional de Cinema (Ancine), que despeja dinheiro que, em vez de ir para creches ou hospitais, serve a uma rede de vagabundos influentes e com poder de persuasão, que, metidos à besta, ainda se dão ao luxo de concorrer a prêmios internacionais e criticar o Brasil, enquanto meia dúzia de gatos-pingados pagam ingressos para assistir a um produto que não se sustenta pelo que entra no caixa da bilheteria, produções que faliriam se não fosse a incrível força sugadora de mamarem em tetas estatais.

Escritores, num país em que quase ninguém lê, precisam de um cantinho e ser sustentado pelo serviço público. Caso contrário, não param em pé com o resultado de sua literatura complexa e estilosa, acredita o novo político. 

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Desde Machado, precisam de um empreguinho e, agora, de um premiozinho aqui e acolá ou, claro, de uma bolsa de dinheiro público daqui e d’acolá, que daria para construir escolas com bibliotecas, e não sustentar delírios egocêntricos de uma categoria narcísica que acredita que todos devem ler seus dilemas pessoais, dos quais quase ninguém consegue passar do primeiro parágrafo.

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Para a nova política, uma torneira com defeito flui recursos públicos para uma vagabundagem que, como sanguessuga, infesta todo corpo da sociedade. Um novo político, bem-nascido, criado na caserna ou na escola da alta sociedade, nascido no berço de uma nova política, a não política, será capaz de guilhotinar o câncer na sociedade, o intelectual, a origem de todo o mal. 

A nova política já tem seu discurso: a ideologia inventou a corrupção, a ineficiência estatal, o parasita no serviço público, cabides de emprego, quer transformar o Brasil numa Venezuela, é muito camarada com seus artistas, intelectuais e movimentos sociais. O novo político dará um basta. 

Saberá gerir, cercado por bons gestores, que chegaram aonde estão por mérito, fechará o vazamento de recursos públicos, tirará do currículo frescuras como filosofia, geografia e história, que não elevam a produção no campo nem nas linhas de montagem, mas criam debates infrutíferos e crises existenciais.

A nova política, por ser nova, não está desgastada. Gritará com orgulho: “Tenho aquilo roxo!”. E, como a velha política atolou o País na lama da corrupção, passará uma vassoura nas rampas do poder. Cantará a plenos pulmões: “Varre, varre, varre vassourinha! Varre, varre a bandalheira! Que o povo já está cansado de sofrer dessa maneira...”.

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Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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