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Noemi Jaffe faz dos relatos de sua mãe ao sair de Auschwitz um mosaico de perguntas

Autora lança 'O Que Os Cegos Estão Sonhando?' nesta terça-feira, 13, em São Paulo

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A pergunta ronda o livro O Que Os Cegos Estão Sonhando?, assim como toda a literatura dos sobreviventes do Holocausto: é possível julgar quem atravessou o inferno e voltou de lá para contar? É obviamente uma questão sem resposta, pois essas pessoas, naquela condição, já não estavam sob o domínio da moral do mundo para além das cercas eletrificadas; ao contrário, a moral dos campos de extermínio e dos guetos não era humana: o conjunto ético resumia-se à selvageria da "lei do mais forte". Cada dia passado nessas circunstâncias era um degrau abaixo na civilização. Ainda assim, algo puramente humano resistiu, e isso está dito não nos depoimentos repetitivos dos sobreviventes, sempre escorados no tripé fome-crueldade-morte, e sim no que não está expresso, na memória trancada no cofre da resiliência silenciosa, a memória indizível. É essa memória que a escritora Noemi Jaffe parece perseguir ao expor o relato que sua mãe, Lili, escreveu quando deixou o campo de extermínio de Auschwitz. O Que Os Cegos Estão Sonhando? (Editora 34), que será lançado nesta terça-feira, 13, junto com outro livro de Noemi, A Verdadeira História do Alfabeto (Companhia das Letras), é um mergulho emocionante na natureza humana.

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Lili, que então tinha 19 anos, foi salva em abril de 1945, após 11 meses como prisioneira dos nazistas, e a Cruz Vermelha a levou para a Suécia. Lá, ela decidiu pôr no papel o que estava fresco em suas lembranças sobre a tragédia pela qual acabara de passar. Lili escreveu em forma de diário, como se estivesse vivendo a experiência naquele momento, mas logo as primeiras linhas traem sua condição de narradora do passado: "Todos à minha volta, assim como eu, estamos tristes. Sabemos o que está acontecendo e também o que acontecerá". Poucos sabiam de fato "o que está acontecendo e também o que acontecerá", e muito provavelmente Lili não tinha, no dia em que foi capturada, a menor ideia sobre a terrível realidade dos campos de extermínio, porque os nazistas mentiam aos judeus sobre o que os aguardava. Quando escreveu o diário, porém, Lili sabia perfeitamente sobre o que falava - e o que ela viu não cabe nas palavras existentes.

"Carregavam mulheres vivas, em carroças e caminhões, para o crematório. (...) Eram gritos de lamentações desde a manhã até a noite", escreveu Lili. As referências à fome e ao frio constantes são o fio narrativo. "Chorávamos de frio e de dor. (...) Dormíamos como sardinha em lata. (...) Havia muitos ratos. De noite, depois de termos comido, sentávamos juntas e tentávamos matá-los. Era assim todos os dias e hoje tampouco é diferente."

A fome é onipresente, de tal modo que, na narrativa de Lili sobre os dias posteriores à libertação, há sempre alguma menção à farta alimentação que ela e as primas puderam ter na Suécia. "Admiravam-se do quanto éramos capazes de comer. Depois do almoço ainda tínhamos fome." É notável o choque entre a privação absoluta e a abundância, e Lili não deixa de registrar poeticamente seu regresso ao mundo civilizado: "Aos poucos, vou tomando a forma de um ser humano. Agora as coisas não estão diante de mim como num sonho. Sinto a liberdade e a natureza".

Milhões de mortos depois, Lili precisa acreditar no destino, e Noemi atribui essa crença a uma tentativa de "expiar a culpa de ter sobrevivido". E sobreviver, nesse contexto, significa esquecer. "Que possamos deixar a morte lá, sozinha, no lugar que ela ocupou. Que a morte não venha do passado para assustar a vida de agora", pede Noemi no livro.

De fato, como Noemi mesma diz, há muitos relatos sobre o Holocausto, a maioria dos quais com as mesmas referências, já que os nazistas tentaram destruir até mesmo a possibilidade de que seus prisioneiros tivessem experiências individuais. O livro de Noemi e de sua mãe, porém, não é apenas mais um relato doloroso; é a conclusão de que não há respostas para o que aconteceu. Mas há uma certeza: "É preciso esquecer, é preciso esquecer". Eis a chave para superar um passado tão infinitamente mau. Então, Noemi transforma o relato em um mosaico de perguntas - é, desse modo, uma obra infinita. Embora elabore continuamente sobre a memória, ou seja, sobre as referências do passado, ela não se ancora em nada. Navega ao sabor das percepções contraditórias sobre a grande tragédia da existência. A memória de quem atravessou o mais absoluto inferno é, por isso, "uma caixa preta que caiu no mar".

NOEMI JAFFE

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Amoreira. Rua dos Macunis, 510, Alto de Pinheiros, 3032-5346.

Terça, 13, às 19h30 (lançamentos) e 20h30 (sessão de leituras)

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