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Luzes da cidade

Nenhuma notícia, boa notícia

"Você deve continuar. Não posso continuar. Vou continuar." (O Inominável, de Samuel Beckett)

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Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Notei que não estava sozinha quando a estação de rádio de Nova York pediu aos ouvintes para telefonarem contando como enfrentam tanta notícia ruim. Era o fim de semana seguinte à invasão de Gaza e à derrubada do avião da Malaysia Airlines sobre a Ucrânia. E a turma telefonou mesmo, relatando todo tipo de tática como fazer ioga ou simplesmente ficar offline, um privilégio que nem todos que trabalham podem esperar.

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Meu feed no Twitter era só tragédia. Gaza, corpos saqueados no leste da Ucrânia, a Líbia desmoronando, o Iraque em guerra civil, a Síria, hors concours, com mais de 700 mortes em dois dias. Sem contar as novas vítimas do Boko Haram. Se pusesse uma venda nos olhos e colocasse o dedo num ponto do mapa do mundo, a chance de acertar numa zona de guerra, terrorismo e miséria era alta.

A certa altura, confesso que perguntei se alguém tinha alguma boa notícia que eu pudesse retuitar.

Mas estou em Manhattan, pensei, e aqui não há guerra civil. A compaixão deve continuar, mas preciso olhar em volta para temperar um pouco tanto pessimismo. Por exemplo, tinha eletricidade, ao contrário deste domingo, enquanto escrevo com uma lanterna durante um apagão carioca, torcendo para a bateria do laptop não acabar.

Mas, ainda em Manhattan, liguei a TV na estação de cabo local e dei logo de cara com um grupo de policiais sufocando um homem que tinham acusado de vender cigarros como camelô, o que é ilegal. Ilegal também, há mais de 20 anos, é aplicar a chave de braço para imobilizar suspeitos pelo pescoço. Eric Garner, um asmático obeso que os vizinhos chamavam de gigante gentil, morreu na calçada de Staten Island enquanto gritava "Não consigo respirar!". Os paramédicos na cena não tentaram ressuscitá-lo. A cena do crime, não a infração menor que Garner negou em voz alta, mas sua morte estúpida, foi toda capturada por uma mulher com o celular e um dos policiais ainda acenou para ela.

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E o mundo-cão continuava pela semana adentro, nas histórias dantescas que emergiam sobre as crianças centro-americanas que cruzavam a fronteira do Texas trazidas por coiotes, contrabandistas de imigrantes. Assistir a um telejornal, este hábito em extinção, na semana passada, era se submeter a uma dieta de horrores próximos e distantes.

Não teria a coragem dos jornalistas que se dispuseram a assistir à execução de Joseph Wood, com 25 anos de residência no corredor da morte no Arizona, submetido a um ritual medieval por seus carrascos que testavam um novo coquetel de injeção letal. O procedimento que deveria durar dez minutos durou duas horas. No único país ocidental que mantém a pena de morte, a agência Associated Press contou as 600 vezes em que o condenado arquejou antes de expirar. É o mesmo país onde um juiz proeminente acaba de sugerir a volta do pelotão de fuzilamento. E pensar que, na década de 70, Woody Allen fez piada sobre esta modalidade de execução em sua paródia de uma ditadura latina em Bananas. A coisa está tão feia que um comediante da HBO avisou no começo de seu programa: vou mostrar um vídeo de bichinho engraçadinho antes do segmento sobre a pena de morte.

Há os que selecionam sua indignação com os dramas que nos cercam, como o nosso governo, que denuncia a invasão de Gaza. Mas não a derrubada de um avião com quase 300 passageiros, por um míssil fornecido pelo ditador com quem assinamos um acordo de defesa antiaérea.

Há os que mandam seu cheque para a organização Médicos Sem Fronteiras tratar das crianças sírias refugiadas. Eu me pergunto se alguns deles são os mesmos progressistas de Cape Cod em Massachusetts, cenário idílico e destino de afluentes no verão, que se revelaram coléricos xenófobos quando o governo estadual ofereceu uma base militar vizinha para abrigar temporariamente algumas centenas de crianças centro- americanas apreendidas na fronteira.

A caminho do aeroporto Kennedy, pensei, vou dar um tempo com esta mania de acompanhar todo o noticiário internacional o tempo todo. Vou ler mais ficção e menos sobre as crianças palestinas.

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Na saída do Galeão, passo por uma procissão de soldados com metralhadoras. Olho para a Favela da Maré e vejo um tanque do Exército.

Um motorista de táxi carioca conta que se recusa a pegar passageiros na porta de bancos porque a moda agora é seguirem os táxis de moto e apontar uma arma de cada lado. Uma passageira dele levou um tiro na cabeça.

A escuridão deste quarto de hotel, cortesia da Light, é a iluminação própria para o momento.

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