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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Não se pode viver lá no sol

Joaquim, de quase 4 anos, passa o dia cantando na varanda músicas que ele inventa

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Atualização:

Escritor tira férias para escrever. Dessa vez, tirei férias para não fazer nada. Não tínhamos TV, mas Wi-Fi. Víamos estrelas no céu e streaming às noites. Não entrei em redes sociais, nem chequei e-mails. Minha companhia foi a família. E 900 páginas de Vida e Destino (Vassily Grossman).

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Estávamos numa praia com rio, muitos moradores locais, PFs, uma padoca, uma venda, duas sorveterias. Única obrigação era passear às tardes com meu filho mais velho, que convocava: “Vamos dar uma volta ao redor do mundo”.

A ida demorou sete horas, num congestionamento não detectado pelo Waze. Três acidentes interromperam o tráfego na Mogi-Bertioga e Rio-Santos. 

Eu, a mulher, Joaquim, quase 4 anos, e Sebastião, um e meio, com biscoitos de polvilho, doces, frutas e água, sem rádio ou sinal de celular, precisávamos de música. Só havia um CD: Transa. Que sorte... Caetano Veloso entrou com tudo na nossa rotina casualmente. 

Transa, de 1972, é tão complexo e completo, que é possível numa viagem de carro escutar diversas vezes. A família, especialmente Tião, foi tragada pelo disco de uma tristeza construtiva, positiva. Que é sobre saudade, solidão, orgulho, prestar homenagens, repensar a vida, reconsiderar planos, buscar entender o desconhecido dentro e fora de nós: “You don’t know me, better never get to know me, fell so lonely... There is nothing you can show me from behind the wall...”.

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A história dele é tão sensacional quanto o conteúdo. Caetano, com Gil, expulso do Brasil, depois de dois meses preso, em que lhe rasparam os cabelos, chegou a Londres com pouco dinheiro, sem falar inglês direito, tímido, Curioso, apavorado. Vivera o terror de não saber se seria morto ou torturado no minuto seguinte. 

Caetano dedica páginas de Verdade Tropical a ele. Conta que militares, depois de mostrarem uma lista de artistas que estava colaborando com o regime, facilitariam a vida dele se fizesse um disco em homenagem à Transamazônica, projeto-símbolo da ditadura.

Ao chegar a Londres, fez Transa. Disco com Asa Branca (Luiz Gonzaga), Gregório de Matos (Triste Bahia), e o genial e esquecido e elegante sambista showman Monsueto Menezes (Mora na Filosofia), o Marvin Gaye do samba brasileiro; Caetano o gravaria novamente em Araçá Azul. Afoxé, capoeira, Abaeté, bairros baianos, cantos de samba de roda, afros, em três sessões de gravação, como se fossem um show, uma jam session, sob a direção do absoluto Jards Macalé. Caetano chamou da Bahia Moacir Albuquerque para fazer “um contrabaixo baiano”. Tutti Moreno e Áureo de Sousa, que estavam em Londres, na bateria e percussão. 

Ralph Mace, um ex-executivo da Phillips, produziu. E mudou a carreira do baiano, ao pedir para o próprio tocar violão, que ninguém melhor que ele, que se achava um instrumentista inferior, levava suas músicas. Caetano diz que é dos seus discos favoritos, apesar de nunca os escutar. Não parou de tocar nas vitrolas dos meus anos 1970. Eu tocava e cantava no violão a maioria das músicas em rodas e fogueiras. Uma casa em que morei com uma turma mais da pesada preferia o próximo, o maravilhoso Araçá Azul, o disco mais experimental do Caetano.

No carro, Joaquim o escutou em silêncio, concentrado. Tião, quando acabava uma música, reclamava até começar a próxima. Não reclamaram das quase sete horas de viagem e desconforto. Fomos tragados pelo clima do disco. Minha mulher o definiu bem: “Gosto, porque Caetano é atirado”. Na casa da praia, para colocá-los para dormir, fui de Caetano. Todos os discos estão no YouTube. Fui de Terra e Canto de Um Povo de Um Lugar. Como visitamos a Aldeia Rio Silveiras da Serra do Mar, de índios guaranis, em que Joaquim ganhou um arco e flecha do pajé, mostrei Um Índio. Há mais de 30 anos, eu tocava todas elas no violão.

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A poética sociológica (“que gostava de política em 1966 e agora dança num frenético Dancing Days” explica uma década) e a metafísica com exaltação da natureza tropical domou Joaquim. Passa o dia cantando na varanda músicas que ele inventa, com letras intrigantes que não ouso interromper. Captei uma que dizia “e o sooool, não pode comer lá no sol, não pode viver lá no sol, e nada, a festa acabou...”. Ele faz 4 anos semana que vem! Tião, hoje, só dorme se ouvirmos De Conversa / Cravo e Canela (primeira faixa de Araçá Azul), uma maluquice que Caetano fez com Milton Nascimento e Ronaldo Bastos.

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Me lembrei de como Caetano é importante a todos nós. Mace pedira para ele ficar em Londres, que sua carreira bombaria lá. Estava convocado para fazer a trilha de Irmão Sol, Irmã Lua, de Zeffirelli. 

Mas, assim que teve uma brecha, voltou ao Brasil dos mesmos militares que o aterrorizaram, a nós, à nossa cultura, ao trópico. 

Como deficiente, defendo o lugar de fala. Mas como, quando se escuta Tigresa, não ceder a um homem o direito de falar sobre uma mulher que conta que “com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher, que tem muito ódio no coração, que tem dado muito amor, e espalhado muito prazer e muita dor, mas ela ao mesmo tempo diz que tudo vai mudar, porque ela vai ser o que quis”.

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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