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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Miséria de vida

'A Felicidade Não se Compra' poderia muito bem chamar-se 'It's a Miserable Life'

Atualização:

Ninguém viu nem jamais verá um filme intitulado It’s a Miserable Life. Dele só existe e apenas existirá um cartaz, desenhado e recém-postado nas redes sociais por um internauta anônimo. É uma brincadeira com It’s a Wonderful Life (no Brasil, A Felicidade Não se Compra), o melodrama de Frank Capra há décadas ritualisticamente reprisado na TV e em vários cinemas americanos na noite de Natal. O cartaz é uma réplica paródica do pôster original do filme de Capra, acrescida deste slogan no rodapé: “Christmas is dead, and we killed it” (O Natal morreu, e nós o matamos). Nós quem? Os filósofos Friedrich Nietzsche, Jean-Paul Sartre, Arthur Schopenhauer e Slavoj Zizek. São eles os astros do imaginário filme, “produzido e dirigido por Jean Baudrillard”. Algum tempo atrás, a gozação não pareceria tão oportuna quanto agora. Nem é preciso seguir com atenção o noticiário para constatar quão miserável ficou a vida neste planeta - notadamente depois da ascensão do Arturo Ui laranja à Casa Branca.  (Ainda que desconheça quem foi Arturo Ui - uma hitleriana mistura de Al Capone com Ricardo III que, numa peça, Bertolt Brecht fez ascender na Chicago dos anos 1930 - você sabe a quem me refiro.) Na verdade, quem matou o Natal, vale dizer o espírito natalino, não foi o quarteto de filósofos supracitados, mas a sociedade de consumo, insana, perdulária, egoísta e profundamente anticristã que o pior do capitalismo estimulou. Isso transparece, de forma oblíqua, no filme de Capra. Que, aliás, poderia intitular-se “It’s a Miserable Life” não fosse esse título inadmissível do ponto de vista comercial. E se Capra acreditasse menos na pureza de sentimentos do homem comum. Os humildes podem não herdar a Terra, mas sempre saem como heróis das fábulas do cineasta. Se não achasse sua vida miserável, George Bailey, o depressivo protagonista interpretado por James Stewart, não começaria o filme tentando suicidar-se nas águas do rio que banha a bucólica Bedford Falls. Nada dera certo para ele. Sonhava com sacudir a poeira da cidade, dotá-la de pontes, arranha-céus, e viajar aos lugares exóticos que namorava nas páginas da National Geographic, em vez de ficar preso ao escritório da pequena financeira paterna. Perdeu a universidade quando o pai morreu e a chance de ir pra guerra por causa de uma deficiência auditiva, indiretamente provocada por um dos irmãos. O altruísmo e a abnegação, não apenas o acaso, quase arruinaram a vida de Bailey. Demovido do suicídio por um avuncular anjo chamado Clarence, Bailey só se convence da importância de sua existência depois de testemunhar, pelo condão de Clarence, como teria sido o mundo sem a sua presença, sem as suas providenciais intervenções na vida da cidade, dos seus habitantes e de seus familiares. Sem ele para enfrentar o usurário Henry S. Potter e sua voracidade pecuniária, Bedford Falls jamais seria ou voltaria a ser o pacato lugarejo em que Bailey nasceu e se criou. Agitada por clubes noturnos, cassinos, salões de bilhar, cinemas, luzes néon e prostituição, teria até outro nome, Pottersville, mantendo, porém, detalhe importante, a mesma estrutura econômica e os mesmos valores de Bedford Falls - com outras e mais graves distorções. Bailey, um pequeno banqueiro do bem, que não mede sacrifícios para ajudar a clientela miúda, emprestando-lhe dinheiro a juros baixos e outras benesses, fica chocado com a Pottersville fantasiada pelo anjo. De todo modo, não é mais empolgante a vidinha levada em Bedford Falls. Se Pottersville é ou se transforma num horror urbano, numa caricatura provinciana da “cidade grande”, consumando as concepções de progresso e modernidade do banqueiro do mal (um vilão que idolatra Napoleão e parece saído das páginas de Dickens), Bedford Falls é um tédio só, um lugar sem lazer, modorrento, demasiado sombrio para nos evocar a plácida América de Norman Rockwell. Embora seus dois roteiristas tenham desenvolvido o script a partir de uma historinha impressa num cartão natalino, daquelas que outro personagem de Capra, o Gary Cooper de O Galante Mr. Deeds, escrevia para dar vazão a seus dotes literários, A Felicidade Não se Compra é muito mais que um filme natalino. Assim como Adorável Vagabundo (Meet John Doe) é menos uma tragicomédia sobre o frustrado suicídio de um maior abandonado na noite de Natal do que um drama sobre as consequências da Grande Depressão. Alguém observou que A Felicidade Não se Compra é o menos religioso (esqueçam o anjo) e o mais humanista dos filmes de Capra. Seus personagens, apesar de acomodados e otimistas, não esperam por uma intervenção divina, preferem agir por conta própria, enfrentando a vilania de Mr. Potter com as armas da solidariedade e da compaixão. Cinéfilos com conhecimento de economia já organizaram mesas-redondas para discutir a propriedade com que Capra expõe o sistema bancário e suas perversidades e os abusos do mercado imobiliário desregulamentado. O FBI de Hoover cismou que ali havia uma “mensagem subversiva”. Com a caça às bruxas dando suas primeiras rasantes, um memorando sigiloso de 1947 acusou o filme de “desacreditar os banqueiros”, denúncia que só não prosperou porque um ex-comunista de boas com a falange macarthista depôs a seu favor, salientando que Bailey e seu pai afinal passavam uma imagem positiva dos homens de negócios, não eram sanguessugas de hipotecas.A Felicidade Não se Compra não precisou da chegada do Natal para ser lembrado pela mídia quando estourou, em 2012, o Caso Abacus. Sediado na Chinatown de Manhattan, o Banco Abacus, instituição familiar criada e dirigida por um imigrante chinês chamado Thomas Sung, notabilizou-se por ajudar a comunidade chinesa com empréstimos e acertos financeiros camaradas. Um alto funcionário do banco fraudou a clientela e quase levou o honesto e generoso Thomas Sung à falência e à prisão. O desenrolar do processo foi tão emocionante quanto o terço final de A Felicidade Não se Compra, e rendeu a Sung o merecido apelido de “o George Bailey de Chinatown”.

Opinião por Sérgio Augusto
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