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Minha primeira morte

Manda o breviário do bom jornalismo que um profissional da imprensa jamais se comporte como um aparecido, um semostrador. Ao contrário, deve ele buscar, o tempo todo, a inatingível impessoalidade, na batalha pela não menos inalcançável objetividade. Tudo bem. Mas a categoria às vezes exagera – para um lado e para o outro. Volta e meia a gente vê usar primeira pessoa quem não chega a ser a terceira. Ou, na outra extremidade, quem parece empenhado em engolir a tal realidade com a goela omnívora dessas câmeras de segurança que tudo registram, inclusive nada.

Por Humberto Werneck
Atualização:

A indispensável busca de isenção pode levar a exageros cômicos como o daquele do repórter que, vendo o Brasil ganhar uma Copa do Mundo, não se permitiu, no apito final, um esgar de contentamento. Torcedores da seleção adversária não poderiam acusá-lo de parcialidade.

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Por todas as razões, entre elas uma exemplar modéstia, provavelmente a maior na rua onde moro, em décadas de jornalismo evitei recorrer à primeira pessoa do singular. Houve um dia, porém, em que me aconteceu não só virar assunto como acumular a tripla condição de pauta, repórter, & fonte – e aí não tive como não recorrer ao mais autorreferente dos pronomes pessoais. Afinal, tratava-se de minha morte. Sim, essa ocorrência que muitos, na tentativa de aliviar-lhe o peso, chamam de falecimento. Como diria um médico, fui a óbito.

Era eu um dos responsáveis pela redação da sucursal paulista do Jornal do Brasil, e me ligou da sede, no Rio de Janeiro, o editor da revista Domingo, pedindo histórias para uma reportagem sobre pessoas que tiveram problemas por causa de homônimos. Prometi colaborar, e já ia desligando o telefone quando me dei conta de que tinha, bem à mão, o que o editor queria. “Serve eu?”, me ofereci.

E lhe contei a história, acontecida em março de 1970, pouco antes de me mudar de Belo Horizonte para São Paulo. Mais tarde, contei também por escrito, mas você certamente estava lendo coisa mais interessante, o que me autoriza reincidir no assunto, debulhado agora em pormenores que lá não caberiam.

As emissoras de rádio, naquele tempo, punham no ar convites fúnebres, precedidos de rubrica – “Uma nota de falecimento” – e de soturna batida de gongo. Foi assim que, certa manhã, tendo dormido com o rádio ligado, acordei com a notícia de que Humberto Werneck havia morrido.

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Creia: para quem se chama Humberto Werneck, não há pior maneira de começar o dia. O locutor da Rádio Inconfidência informou ainda que o féretro sairia às tantas da tarde da rua Hermilo Alves, 350 (era ainda o tempo dos velórios residenciais), para a necrópole do Bonfim. Féretro, necrópole: a morte tem dessas coisas.

Embora fosse outra a minha rua, nela desabaram, instantaneamente, dezenas de telefonemas, de amigos e parentes, todos consternados com o meu passamento. Ressabiadíssimo – era a primeira vez que morria –, não pude saborear tamanha fartura de manifestações póstumas de estima.

Pelo meio-dia, já sem rigor cadavérico, me veio a ideia de comparecer ao meu velório. Só não fui porque minha mãe alertou para a eventualidade de encontrar, à beira do caixão, alguém que ali estivesse para me velar. Durante anos, de fato, topei com conhecidos que me julgavam morto – um deles deixou cair uma garrafa de cerveja ao me ver entrar, sem lençol branco, na Lanchonete Nacional. Quanto a mim, acabei tropeçando um dia no meu túmulo, enquanto procurava o de meus avós no cemitério do Bonfim.

Não recomendo a ninguém a experiência de ler, numa lápide, seu nome e as datas de nascimento e morte. O inquilino do carneiro n.º 143 da quadra 49 (fui à Administração e exumei a ficha) era um segundo sargento da Polícia Militar, levado desta para melhor, ou pior, numa encrenca hepática. De quebra, fiquei sabendo que carneiro, na acepção não ovina, remete a carne, essa que a terra há de comer, se não a cremarem.

Fosse apenas o sargento – mas não: anos mais tarde, me morre outro Humberto Werneck, este no Rio de Janeiro. O susto só não foi igual porque entre nome e sobrenome havia alguma coisa a mais. Carrego desde então a suspeita de que, tendo morrido dois, sou agora a bola da vez. Quando menos, pelo critério antiguidade. Só no Facebook há cinco cidadãos de nome Humberto Werneck, de Manaus a Caxias do Sul, passando por Timóteo (MG), Santo Antônio de Pádua (RJ) e Goiânia – e suas fotos, ali, não me deixam dúvida de que sou, de todos os xarás, o mais encaminhado.

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Mas retomemos. Eufórico com o meu relato, o editor da revista Domingo declarou, sem intenção de trocadilho, que a história caíra do céu para a sua reportagem, intitulada “Dublê de nome” – e não sossegou enquanto não me convenceu a ir posar, vivo e em cores, ao lado de meu sepulcro. O que foi feito num final de manhã tão bonito que precisei me conter para não declamar, naquele mar de cruzes, o In Extremis de Bilac: “Nunca morrer num dia / assim! De um sol assim!”.

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Mais objetivo, o fotógrafo do jornal torceu o nariz para o meu carneiro, no qual, aliás, o sargento pegava carona na família da mulher, um punhado de entes queridos com o mesmo sobrenome italiano. Tanta gente que me vem a tentação desrespeitosa de escrever “cortiço”; que tal “mortiço”?

“Isso aqui tá uma tristeza”, sentenciou meu companheiro, e, sem maior cerimônia, se apoderou de um vaso de flores nas vizinhanças. Em seguida, me pôs para desfilar por detrás da tumba, enquanto disparava fotos e instruções: “Mais pra cá! Isso. Cara menos séria! Apoia um cotovelo aí na sepultura. Assim! Agora senta meio de lado”.

A modéstia me impede de admitir que não fiquei mal na foto, usada para ilustrar um pequeno texto – em primeira pessoa, fazer o quê? –, ao qual o editor pespegou o título daquele filme com o Warren Beatty: O Céu Pode Esperar. Espero que possa mesmo.

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