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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Medo ou esperança?

O paraíso nos escapou depois de ter aberto os portões e deixado perceber suas delícias

Atualização:

O Brasil é o país do futuro! Do ufanista Policarpo Quaresma à ironia da letra de Renato Russo, esse sempre foi um tema forte. O futuro à frente não é um pleonasmo tão evidente. Comparemos com dois países importantes na nossa formação: Portugal e Argentina. Lisboa foi a capital das especiarias e o mundo da vanguarda dos descobrimentos no início do século 16. Buenos Aires era o porto cosmopolita de uma nação que abastecia o mundo de grãos e carne no início do século 20. Argentinos e portugueses viveram um apogeu fabuloso e suas capitais trazem marcos notáveis do passado de glória. Houve glória e ela passou. Nós somos diferentes. Sempre acreditamos na potência do amanhã. O cenário possibilita o devaneio: território de riquezas enormes e sem terremotos, tínhamos tudo para dar certo. Faltava, claro, mudança no elenco e na direção. A culpa não era da terra ou das águas.  Não quero voltar ao tema do debate sobre os entraves do desenvolvimento. Já fiz algumas vezes. Quero lembrar que sempre fomos notavelmente otimistas com nossa redenção no porvir. Houve quem visse no povo, especialmente o sertanejo, um tipo triste e depressivo, como Euclides da Cunha e Graciliano Ramos. Outras figuras construídas no imaginário brasileiro ou estrangeiro consagravam a alegria e a engenhosidade, de Pedro Malasarte ao Zé Carioca. No exterior, somos conhecidos pela alegria, pela afetividade, pelo contato mais direto com as pessoas. Quem como eu já passou um tempo fora dos trópicos sabe que, fora daqui, são vistos menos dentes, abraça-se menos e escasseiam beijos. Não se trata de refazer a fantasia do mundo sensual e sem pecado que se origina desde a citada criação de Disney até o incentivo ao turismo sexual. Trata-se da alegria. Nosso Éden utópico e feliz parece abalado. Seria a crise? Ela está passando. Seriam as mazelas da política? Nunca foi muito animadora. Falta pouco para começarmos a bufar como um francês e a não beijar em público como um japonês. Tenho uma teoria escalafobética. O que nos atrapalhou no mantra “Brasil-país-do-futuro” foi a estabilidade econômica e o otimismo político entre os anos FHC e Lula. O sucesso nos subiu à cabeça. A estabilidade da moeda e os programas sociais aliados a presidentes com críticas, mas populares, trouxeram ventos novos. O futuro tinha chegado! Muita gente tendo acesso ao consumo. Revoluções sem fuzis: a do iogurte, a do frango, a dos aviões, a do acesso à universidade! O futuro, aquele que Stefan Zweig havia descortinado (sem acreditar nele pessoalmente), era uma realidade agora. Tinha chegado nossa vez na fila do desenvolvimento. Um presidente da maior potência do planeta aponta para o nosso governante e diz: ele é o cara! Nosso presidente era o cara! Por extensão, o Brasil era o país! Sim, muita gente, atualmente, diz que não gostava do cara. Mas um cara muito poderoso disse que “o cara” nos governava. E o cara daqui terminou o mandato com 80% de aprovação. Minha teoria é que estes anos estragaram nosso otimismo. Por quê? Fomos retirados da utopia esperançosa e algo ingênua para a dura realidade da crise econômica intensa e do descrédito político. Nem o governante deposto do Zimbábue diria, hoje, que nosso atual líder é o cara! Nem o cara de antes receberia elogios rasgados em qualquer lugar. Por extensão, deixamos de ser “o país”. Não foi apenas o descrédito do ocupante do Executivo, é o desdouro nacional em si. Estamos muito macambúzios. O tamanho da dor de 2013 a 2017 foi a de ter quase morado em Versalhes, mas ter de voltar ao puxadinho cinza de sempre. O paraíso nos escapou depois de ter aberto os portões e deixado perceber suas delícias inenarráveis. Se fosse uma figura mitológica, teríamos a experiência de Orfeu. O músico quase divino perdeu a amada Eurídice. No apogeu do idílio, ela foi para o mundo dos mortos. Com sua arte comovente, Orfeu convenceu Plutão a permitir a volta da amada. A condição? Não olhar para trás até que ambos estivessem no mundo dos vivos. De lira em punho, o apaixonado guia a sombra da eleita até a saída. No último instante, já antevendo as delícias do casal que se reencontraria, dá a mão e se volta para que ela saia do buraco no solo. Erro fatal. A regra foi quebrada e Eurídice retorna ao mundo sombrio. A dor de Orfeu é tão grande que inspirou óperas e quadros. Perder tendo quase conseguido! Extraviar a vitória na undécima hora! Derrota ocorrida aos 45 do segundo tempo! Há uma diferença entre sonhar com o Paraíso que pode ser encontrado um dia e perdê-lo tendo quase conseguido. A esperança radiosa piora a dor do fracasso. O que nos estragou parece ter sido o “quase” que vivemos há pouco. Em poucos dias começa um novo ano. Indicadores econômicos permitem otimismo prudente. Teremos eleições. Posso pensar que estamos quase tornando impossível piorar a qualidade dos eleitos. Será o momento da virada? Se nunca tivéssemos realizado a melhoria, teríamos uma onda otimista intensa como sempre. Viria um líder salvador, o país do futuro estaria à frente. Escaldados, temos medo de olhar a esperança no fundo da caixa de Pandora. Quem sabe agora, sem expectativas, diminuída a ansiedade de tudo, tenhamos a possibilidade de fazer algo realmente novo? Quem sabe o novo chegue quando tivermos desistido de imaginá-lo ou de ansiar por ele? Seria como o amor que a genial Clarice Lispector afirmava ser possível apenas para distraídos? Boa última semana do ano de 2017. Que venha 2018!

Opinião por Leandro Karnal
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