Mathieu e seus dois pais

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Por Silviano Santiago
Atualização:

O influente romancista Mathieu Lindon lança sua autobiografia, Ce Qu"aimer Veut Dire (POL, 2011). Mathieu é o filho caçula de Jérôme Lindon, fundador das Editions Minuit, que publica Samuel Beckett, Alain Robbe-Grillet e outros notáveis autores de vanguarda. Ao trabalhar as reminiscências do pai biológico, Jérôme, e do pai intelectual, Michel Foucault, Mathieu insere o relato na tradição dos "romancistas moralistas", clássicos modernos franceses publicados pela família Gaston Gallimard, concorrente da Minuit. Parente próximo de Mathieu é o cruel Raymond Radiguet, amigo de Jean Cocteau. Na vida e em literatura, Jérôme e Mathieu trilham caminhos paralelos, daí a necessidade de o adolescente buscar o filósofo Michel Foucault para ocupar o lugar real e amoroso da paternidade.Na escrita literária de Mathieu, os petardos da fala alternativa parisiense são atirados contra a austeridade e a litotes da análise psicológica francesa e evidenciam a insubordinação da juventude burguesa, prevalente nos anos 1970. As filigranas dos sentimentos abstratos, como o amor e o ódio filial, o desejo e o gozo carnal, o esquecimento e a lembrança, a rebeldia e a devoção, são expostas em frases como fios elétricos desencapados, ou seja, em frases tão lembráveis quanto máximas. "Ainda hoje, estou mais preparado para o impudor que para a indiscrição", lemos e retemos.Na leitura da narrativa francesa típica, a graça está no clarão que ilumina a discordância entre o afirmado e o descrito. O bom leitor abre a brecha da contradição interna que rejuvenesce o texto e robustece a riqueza enigmática do relato, haja vista nosso Machado de Assis. Diante de narrador a se vestir com as flores convenientes da retórica, o leitor as despetala para encarar o personagem recoberto pelos espinhos dos propósitos camuflados. Ao refletir sobre o impudor, assumido pelo narrador já avançado nos anos de vida, o leitor realça a roda-viva das várias celebridades que cercaram e encantaram o futuro romancista e crítico. O forte do autobiográfico Ce Qu"aimer Ceut dire não é tanto o despudor, mas a indiscrição.Quem o afirma é o crítico Jérôme Garcin, da revista Nouvel Observateur. Garcin é agudo e penetrante: "Seria preciso ler a longa narrativa de Mathieu como se assinada por desconhecido e povoada de personagens anônimos". E acrescenta: "ao risco de cair na listagem das celebridades, seria necessário poder resistir à tentação da indiscrição". O necessário se impõe. Se a intenção da autobiografia foi a de se submergir na nostalgia despudorada, tal não acontece exatamente. Reconhece-se na topografia do relato um "cemitério onde repousam os principais personagens do livro". E Garcin passa a enumerar os famosos já falecidos: Michel Foucault, Jérôme Lindon, Hervé Guibert, Samuel Beckett (aliás, Sam), Gilles Deleuze, Roland Barthes, Alain Robbe-Grillet e William Burroughs. Narrador desconhecido e personagens anônimos? Temos o corajoso, pungente e perturbador depoimento de sobrevivente dos anos 1970.Nesse sentido, a autobiografia precoce de Mathieu (n. 1955) dá continuidade a esses romances geracionais franceses, antes escritos à clef, cujo primeiro e intrigante exemplo moderno é Les Mandarins (1954), de Simone de Beauvoir, companheira de Jean-Paul Sartre. Não menos fascinante é o romance da psicanalista Julia Kristeva, Les Samouraïs (1990). No site de Philippe Sollers, marido de Kristeva, o leitor abelhudo encontrará "quem é quem" no livro. Mathieu não se insere na tradição pelo gosto da metáfora autodepreciativa (intelectuais mandarins em tempos de pós-guerra, intelectuais samurais nos tempos chineses pós-1968), mas pela análise do sentimento intraduzível em vulgar - o amor. A indiscrição do narrador não é maledicente, mas já o despudorado personagem recebe, como em filme de Jean Vigo, Zero em Comportamento. Voulez-vous Coucher avec Moi (Ce Soir)? seria o bem-humorado título para a autobiografia, agora tomado de empréstimo ao libertário John Lennon dos anos 1970.Lido com discrição, Ce Qu"Aimer Veut Dire lembra o filme Gruppo di Famiglia in un Interno (Violência e Paixão, 1974), de Luchino Visconti. O velho professor e perito em arte, interpretado por Burt Lancaster, quer e não quer se liberar da solidão ao vê-la ameaçada pelos avanços de um jovem guerrilheiro, drogado e sedutor, vivido por Helmut Berger. Se lido com indiscrição, o personagem de Burt é o inapreensível Michel Foucault que, durante as viagens a trabalho no estrangeiro, libera seu "interno" aos mais talentosos e alucinados rebentos da novíssima geração. A ação da autobiografia se passa no apartamento da rua de Vaugirard, que vira parque de diversões para um inusitado "gruppo di famiglia". Oculta-se a versátil Paris. Escancara-se a repetição do gozo instrumentalizado pelo desejo homossexual flutuante e enclausurado entre quatro paredes. O sexo casual campeia entre amigos e estranhos e se soma à vida anárquica e sonâmbula das drogas e das bad trips de LSD e de heroína.No relato autobiográfico, pesam mais as relações íntimas entre os ambiciosos artistas da cena jovem parisiense e menos as relações entre estes e os adultos já profissionais, que os acolhem. Exceção para as figuras paralelas de Jérôme Lindon e de Michel Foucault. O filho caçula oscila. Fica entre o arbítrio do pai biológico que, por exemplo, só publicará o romance de estreia de Mathieu se ele aceitar ter o nome substituído por pseudônimo (Pierre-Sébastien Hedaux), e a generosidade do pai mentor que, com a graça e a astúcia de arlequim fugidio, acoberta os interditos comportamentais do adolescente. O reencontro amoroso de Jérôme e Mathieu se dá tardiamente, em 1084, no enterro de Michel Foucault: "Meu pai comparece e, sem dizer uma só palavra, me abraça, creio que é a única vez em que toma tal atitude".

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