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Lucidez na loucura

Já não me lembro quem foi que me aplicou Maura Lopes Cançado. Foi com certeza uma dessas criaturas nas quais deveríamos prestar mais atenção, propensas que são à garimpagem à margem das obviedades do mainstream. Alguém como o Wellington (ou terá sido o Zé Roberto?), que um dia, no colégio, ali pelos nossos 14, 15 anos, me veio com um tal de Carlos Heitor Cony.

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Para não ficar por baixo, nessa fase da vida em que os moços vivem comparando medidas até mesmo literárias, tratei de ler aquele desconhecido. O primeiro livro que encontrei foi A Verdade de Cada Dia, romance que o Cony mais adiante houve por bem deletar. Não só ele; também eu apaguei A Verdade de Cada Dia, devorado num tempo em que, com apetite de avestruz literário e a companhia do cupincha vitalício Jaime Prado Gouvêa, eu ia me abastecer, meio a esmo, numa biblioteca pública.

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O que em mim ficou daquele romance, o segundo de Cony, um ano após O Ventre, foi a informação embasbacante de que tinha sido escrito em 9 dias. Até eu percebi. Mais célere no teclado, só alguém que fui conhecer décadas mais tarde, o Ryoki Inoue, ex-cirurgião que, exasperado com a desgraceira dos plantões hospitalares na periferia de São Paulo, trocou o bisturi pela pena e se pôs a escrever pelos cotovelos.

Quando o entrevistei, 10 anos depois, Ryoki já era, de longe, o recordista mundial de livros publicados, contabilizando nada menos de 1.040 títulos – um dos quais expelido não em 9 dias, como aquele do Cony, mas em 6 horas, sob o olhar esbugalhado do correspondente do Wall Street Journal, que tomara como fanfarronada a declaração do escritor de que não precisaria de mais tempo para fabricar um romance. Nem mesmo esse imbatível coelho do teclado seria capaz de enumerar suas crias, desovadas nas bancas de jornais sob pseudônimos anglo-saxões do tipo James Monroe.

Mas eis que, à la Ryoki, também eu desembesto na escreveção e me desvio do assunto que me trouxe aqui, a literatura incomparavelmente mais magra e duradoura de Maura Lopes Cançado. Já não me lembro, repito, quem foi que me apresentou a seu primeiro e penúltimo livro, Hospício É Deus, lançado em 1965. Mas não esqueço a impressão ainda hoje fortíssima que me causou sua leitura, dessas que não dão trégua antes de nos depositar, exaustos e em transe, no ponto final.

Entusiasticamente aplicado pelo dono, meu exemplar de Hospício É Deus haveria de desmilinguir-se em dezenas de mãos, pois o livro, reeditado apenas uma vez em décadas, tornou-se raridade. Até por isso me encheu de alegria a iniciativa da editora Autêntica, no final do ano passado, de relançá-lo, e com invulgar capricho, numa caixa que trouxe também o outro livro de Maura, O Sofredor do Ver, de contos, igualmente esgotadíssimo.

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Não se trata, convém avisar, de leitura digestiva, sobretudo Hospício É Deus, e disso já não terá dúvida quem passar primeiro pelas 25 páginas de um perfil biográfico da atormentada autora, assinado por Maurício Meireles e incluído em ambos os volumes. De ponta a ponta, do nascimento, em 1929, à morte, em 1993, é um pesadelo só a vida de Maura Lopes Cançado, filha de família abonada do interior de Minas, que passará extensa parte de sua existência em manicômios, num dos quais, para condimentar ainda mais sua tragédia, ela matou uma companheira de internação.

Precoce, casou-se aos 15 anos, teve um filho, separou-se logo e foi viver, sozinha, solta, em Belo Horizonte, onde aos 18 fez, por iniciativa própria, sua estreia num hospital psiquiátrico. No Rio, para onde se mudou, ligou-se a escritores também jovens, como Ferreira Gullar, em torno do legendário Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, em cujas páginas publicou seu primeiro conto.

O diário que Maura começou a escrever por essa época, e que viria a ser Hospício É Deus, alterna fatias de memória que remontam às origens em Minas Gerais e registros feitos a quente na trepidação de crises e surtos. Luzes intensas convivem com trevas abissais, num fluxo em que o leitor se sente a percorrer, como em montanha-russa, os picos e os precipícios de um eletroencefalograma.

Não sem razão, disse o poeta Reynaldo Jardim – amigo que acolheu Maura nos bons e maus momentos, no Suplemento Dominical e no pântano das internações psiquiátricas – que este é “um livro perigoso, feito para comprometer irremediavelmente sua consciência”. Dele falou também Gullar como sendo “um dos mais contundentes depoimentos humanos já escritos no Brasil”. Documento, sim, mas não só. Hospício É Deus não teria chegado, pulsante, ao leitor de hoje, não fosse, sobretudo, uma obra de arte.