Livro examina série de crimes contra homossexuais

Em Dias de Ira, o jornalista Roldão Arruda investiga os 13 assassinatos ocorridos entre 1986 e 89 que levaram à prisão o garoto de programa Fortunato Botton Neto

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Por Agencia Estado
Atualização:

Na manhã do dia 17 de agosto de 1987, o psiquiatra Antonio Carlos Di Giacomo foi encontrado morto no apartamento em que morava no Edifício Alice, na Rua do Rocio, no bairro Vila Funchal, na zona sul da capital paulista. O médico santista, formado pela Escola Paulista de Medicina, que trabalhava no Hospital do Servidor Público, iria figurar numa lista de 13 assassinatos, cometidos entre 1986 e 1989. Em comum, as vítimas eram homens, tinham de 30 a 60 anos, viviam sozinhas, eram independentes financeiramente e eram homossexuais. É uma extraordinária investigação da vida desses homens e do criminoso apontado pela polícia como o responsável pelos assassinatos, o garoto de programa Fortunato Botton Neto, que move o livro Dias de Ira - Uma História Verídica de Assassinatos Autorizados do jornalista Roldão Arruda, recém- lançado pela Editora Globo. Mergulhando nas extensas páginas, muitas mal escritas, dos relatórios policiais e depoimentos que desembocariam nos processos, Roldão traçou o perfil das vítimas desses crimes, envoltos numa cortina de fumaça para a qual muito contribuiu o silêncio da sociedade e mesmo o de entidades sempre tão prontas para defender os direitos humanos. Nesse ponto, o livro que também descreve o momento político vivido pelo País, até o início da primeira campanha presidencial pelo voto direto após a ditadura militar instaurada em 1964, se transforma numa denúncia contundente do silêncio que envolvia os crimes contra homossexuais. Pessoas que pagam impostos, trabalham, mas denunciam com seus corpos e seu estilo de vida o preconceito que ainda as envolve. Como a americana Susan Sontag, no livro Assim Vivemos Agora, Roldão dá um soco na hipocrisia da sociedade e de alguns de seus representantes, entre os quais o atual ministro Francisco Weffort e o atual vice-prefeito da capital paulista Helio Bicudo. Gente sempre pronta e disposta a defender os direitos humanos, desde que esses não impliquem homens com opções de vida sexual consideradas suspeitas por uma sociedade ainda alimentada e retroalimentada pelo machismo, além da culpa que a Igreja Católica e as evangélicas inspiram, como se, para viver, esses mesmos homens teriam de abrir mão daquilo que consideram vida. Nem as próprias vítimas daqueles anos focalizados com lupa por Roldão fugiam desse jogo da aceitação na sociedade, o que as tornava certamente mais vulneráveis: tinham vida dupla, na tentativa de preservar os familiares de uma opção malvista pela sociedade na década de 80, onde a aids ainda se tornaria uma agravante. É a aids o foco de Sontag e sua contundente crítica. É a solidão que empurra essa gente para os guetos, onde se servem de corpos que se oferecem, por dinheiro ou necessidade a revelação principal da obra de Roldão. O mérito do livro do repórter de O Estado de S. Paulo é exatamente o da pesquisa, que revela os ambientes, com descrições detalhadíssimas de saunas e bares, onde como diria Clarice Lispector em Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, "se serve com ou sem soda". O garoto de programa acusado dos crimes e que fazia ponto no Trianon, como é chamada a região em torno da área verde em frente do Museu de Arte de São Paulo (Masp), na famosa Avenida Paulista, também é perfilado por Roldão com muita precisão. O repórter chega a entrevistá-lo para o livro, em 1995, mas fica devendo aos seus leitores o epílogo de Fortunato Botton Neto, que morreu no presídio de Taubaté (SP) no ano passado, de aids, deixando envolto também em cortina de fumaça alguns dos mistérios envolvendo a morte de suas vítimas. Acusado de 13 assassinatos, seria julgado por três, mas assumiria com mais precisão apenas o do psiquiatra Giacomo. Rigor - Com texto fluido e uma linha de descrição cuidadosa, seqüencial, trazendo para 302 páginas as melhores qualidades do romance policial, Roldão apresenta uma a uma as vítimas daqules crimes. Um jornalista, um diretor de teatro, um decorador, um bancário, um médico, enfim gente comum, que sonhava com amor, carinho, uma casa e uma noitada boa, como aquela descrita na música Folhetim, de Francisco Buarque de Holanda. Só que a noitada boa, nesse caso, termina mal, muito mal para esses 13 homens marcados para morrer. Roldão inicia e encerra seu livro com a investigação daqueles dias, mas descreve os lugares onde muitos outros ainda buscam abrigo numa busca frenética, que pode resultar em novos crimes consentidos. O Trianon ainda é ponto de prostituição masculina na capital paulista e os bares do centro da cidade ainda são freqüentadas por muitos solitários homossexuais à procura de uma noitada boa. Na representação da sociedade, o preconceito pode ter dimuído um pouco, mas ainda vigora. O então presidente da Câmara dos Deputados Luiz Eduardo Magalhães (PFL/BA), quando defendeu o projeto de união civil entre pessoas de mesmo sexo da atual prefeita paulistana Marta Suplicy, teve de enfrentar no plenário e em declarações à imprensa piadas e críticas nada edificantes ao projeto de gente como Inocêncio de Oliveira (PFL/PE), que externava não uma posição individual, mas de muitos daqueles que ainda se escondem nessa cortina de fumaça e preferem o silêncio, que ajuda a sepultar gente como Giacomo. O livro de Roldão é, nesse sentido, uma obra aberta. Um flagrante ou simples faísca de uma realidade que nos cerca, como aquela que descreveu Sontag suplicando à sociedade americana que tratasse os acometidos de aids como doentes e não como condenados à morte pela vida que levavam, caso contrário a própria sociedade pagaria o preço do silêncio. Roldão parece com suas descrições desejar o mesmo ao denunciar a histórica verídica de assassinatos autorizados. É esse flagrante o sinal de alerta e o soco de Dias de Ira, seco e contundente como o bom texto jornalístico deve ser. Dias de Ira: Uma História Verídica de Assassinatos Autorizados. Livro de Roldão Arruda. Editora Globo, 312 págs., R$ 25.

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