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Livro examina o trabalho segundo Marx e Arendt

Estudiosa brasileira analisa as formulações teóricas dos dois pensadores sobre o tema, contrapondo as condições humanas estudadas por Arendt às concepções de Marx a respeito da sociedade. Por Luci Buff

Por Agencia Estado
Atualização:

Numa carta a um amigo, em fins de 1953, a pensadora Hannah Arendt confessou: "Dispus-me a escrever um pequeno estudo sobre Marx, mas... assim que uma pessoa capta Marx, percebe que não se pode lidar com ele sem levar em conta toda a tradição da filosofia política. (...)." No livro Hannah Arendt e Karl Marx: O Mundo do Trabalho, lançado pela Ateliê Editorial, a autora Eugenia Sales Wagner, ao fazer um estudo meticuloso e didático sobre os fundamentos da análise crítica que Arendt fez de Marx, também parece ter sido assaltada pela mesma perplexidade e amplitude das tarefas confessadas por Arendt, mas com uma agravante: a de explicitar, paciente e rigorosamente, as análises arendtianas. Assim, a autora enfrentou as rebeldias, reviravoltas e inversões do pensamento de Marx que aponta, segundo Arendt, para uma inversão primordial: aquela entre vita contemplativa e vita ativa, promovida pelos filósofos socráticos e expressa por Platão na alegoria da caverna. Seguiu também fielmente as pistas de Arendt na busca das experiências humanas fundamentais, que tiveram lugar na polis pré-filosófica e que permitiram, à essa pensadora, construir um novo referencial para a compreensão da realidade moderna e que se constitui no fundamento da crítica de Arendt ao pensamento de Marx. A contraposição das idéias de Arendt e Marx, no entanto, não se reduz a um jogo lógico insípido e vazio, com o objetivo de sublinhar diferenças e proximidades entre um e outro pensador ou de apontar um eventual detentor da verdade. O confronto de idéias, nesse caso, é a criação, pela autora, de um espaço para a discussão do trabalho como um problema atual, que coloca em xeque as análises que enaltecem e acenam para breve a conquista do tempo livre de trabalho pelo homem moderno ou que prometem a redução sensível do desemprego a partir de políticas econômicas corriqueiras, que mascaram a natureza do desemprego atual - fruto da aplicação generalizada e em proporções inusitadas da tecnologia e da ciência em todos os setores da economia. É esse tipo de abordagem que permite a autora afirmar que "ainda que o pensamento de Arendt e o de Marx apresente aspectos conflitantes e muitas vezes inconciliáveis entre si, as perspectivas diferenciadas a partir das quais esses pensadores observaram a sociedade moderna tendem a se completar em muitos casos". Isso porque a "incompatibilidade - aquela que realmente importa - encontra-se na própria realidade", uma referência que Eugenia Wagner faz, com base nos estudos realizados, à impossibilidade de que soluções para os problemas de acumulação de capital, exaustivamente estudados por Marx, coincidam com as soluções para os problemas existenciais do homem moderno apontados por Arendt. Esse é, no entanto, apenas um exemplo do tratamento que a autora dá ao estudo das idéias de Arendt e de Marx. Merece destaque a riqueza das análises que contrapõem as condições humanas estudadas por Arendt - a pluralidade humana, a mundaneidade e a vida - às concepções de Marx a respeito da sociedade enquanto espaço dos homens isolados, enquanto lugar da acumulação de capital e, ainda, como o estágio necessário de um processo que deverá culminar com a abolição da necessidade. Buscando respostas para questões que não puderam ser resolvidas pela teoria econômica e tematizando outras tantas propiciadas pelo pensamento político arendtiano, o livro realiza esta interdisciplinar conversa da economia, história, filosofia e teoria política numa porosidade que permite a oxigenação dos debates, sem escamotear a tensão existente entre filosofia e política nem a impossibilidade de neutralidade da política. Política, bem entendido, em sentido arendtiano: firmada na pluralidade humana, na proteção contra a futilidade individual, na virtude da coragem e na busca da imortalidade. O livro é, segundo a inspiração arendtiana, um saber para um novo começo e um autêntico aval a que "a ação com todas as suas incertezas é como uma recordação permanente de que os homens, ainda que tenham que morrer, não nasceram para a morte, senão para começar algo novo." Hannah Arendt e Karl Marx - O Mundo Do Trabalho, de Eugenia Sales Wagner.Ateliê Editorial, 206 págs., R$ 20,00. Luci Buff é mestre em Filosofia PUC/SP e professora de Direito do Curso de Relações Internacionais das Faculdades Tancredo Neves

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