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Leia o primeiro capítulo de 'Casadas com o Crime'

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Por Redação
Atualização:

Casadas com o Crime, de Josmar Jozino, como o próprio autor explica na apresentação do livro, "começou a ser escrito em novembro de 2006 e traz a trajetória de vida de mulheres do sistema prisional paulista em quatro situações distintas. Uma delas aborda o drama das mulheres de presos. Os maridos as chamam de guerreiras. Não costumam perder um dia de visitas. Viajam centenas de quilômetros para ver o companheiro na prisão. Muitas levam os filhos de colo, a maioria gerada na própria cadeia. São os filhos do cárcere".   Jozino conta ainda em seu livro as histórias de "mulheres de detentos que acabaram presas por envolvimento nas ações do marido" e informa que apesar de a maioria dos nomes e apelidos fictícios, as histórias são reais. Leia a primeira história da obra:     CELA 666   Chovia e ventava forte naquela manhã de março de 1990. Era sábado. Branca saiu de casa com o guarda-chuva caindo aos pedaços. Fora comprar pão na padaria da distante Cidade Tiradentes. Medonho, em jejum, bebia um rabo-de-galo em pé, encostado ao balcão, perto do caixa. Branca pediu seis pãezinhos e um litro de leite tipo C. Ao pagar a conta, deixou uma moeda cair no chão. Gentilmente, o rapaz abaixou-se para pegar o dinheiro. Os dois flertaram:   - Obrigada, moço, agradeceu Branca, apressada. - Não foi nada, senhora. É sempre um prazer, respondeu Medonho, cobiçando o corpo magro da mulher.   Um pequeno apartamento de quarto, sala, cozinha e banheiro da Cohab Tiradentes, no extremo Leste da Capital paulista, era, ao mesmo tempo, moradia e esconderijo de Medonho e de um parceiro de crime. Ele fugira havia poucos dias de um distrito policial. Fora processado por roubo. Domingo, o fugitivo saiu para dar um passeio pelo bairro. O destino novamente o fez encontrar com Branca. Ela vivia num prédio vizinho, perto da Avenida dos Metalúrgicos:   - Bom dia, senhora! É um prazer encontrá-la novamente. - Tudo bem? Por favor, não me chame mais de senhora, pediu-lhe Branca. Ambos sentaram-se no banco de uma praça e se apresentaram. O assaltante tirou um maço de cigarros do bolso da camisa e ofereceu um a Branca. Ela aceitou. Dois dias depois, Medonho já freqüentava o apartamento da mulher.   Ela morava com Rubens, o filho mais velho, de 18 anos, Rebeca, 17, Rita, 13, Rúbia, 6, e Ricardo, 4, o caçula da família. Branca, uma loira de olhos verdes claros, magra, 1,70m, sentia-se sozinha, pois era separada do marido desde junho de 1987, quando ele decidiu ir embora. O marido bebia muito. Misturava álcool com maconha. Chegava em casa alterado e batia na mulher. Era Branca que o sustentava. Ela estudou até a 5ª série num colégio de freiras na Avenida Nazaré, Ipiranga, Zona Sul de São Paulo. Trabalhava de empregada doméstica numa casa no bairro de Engenheiro Goulart, Zona Leste. Nos fins de semana, procurava ganhar mais dinheiro para sustentar os cinco filhos, trabalhando num salão de beleza no Jabaquara, Zona Sul, ou de camareira num hotel em Pinheiros, Zona Oeste. Depois que o marido foi embora, Branca o viu apenas duas vezes. Ela soube por uma amiga, anos depois, que ele havia morrido. Os freqüentes encontros de Branca com Medonho terminaram em namoro. Há tempos ela queria manter um relacionamento amoroso com alguém, mas não encontrava a pessoa certa. Medonho apareceu e mexeu com seu coração. O rapaz, sempre galanteador, contou para a namorada sobre seu passado. Disse que era foragido, era homem do crime:   - Eu estava preso por roubo. Fugi do DP com outros cinco ladrões e com a ajuda de uma teresa. - Tinha mulher também na cadeia? - perguntou Branca. - Não sua bobinha! Teresa é uma corda feita com panos. A gente usa pra escalar a parede, explicou o fugitivo. - Bobo é você! Por que eu deveria entender essa gíria de malandro de cadeia? - retrucou. - Perdão, princesa, você não poderia mesmo saber nada disso, entendeu. Mas vai aprendendo, disse Medonho.   O namoro de Medonho com Branca emplacava a cada dia e já completava dois meses. Ela não se importava em se relacionar com um foragido da lei. Não via maldade nisso. Gostava dele e acreditava na sua  recuperação. Ele sempre a convidava para viajar. Branca, todas às vezes, recusava. Ela não gostava de deixar os filhos sozinhos. O casal saía à noite. Eles adoravam ir a bailes, principalmente de pagode e samba:   - Hoje tem show da Eliana de Lima. Você vai comigo, princesa, intimou Medonho. - Claro que vou, meu negão! Não perco essa por nada.   O casal sambou a noite inteira e saiu do baile no Esporte Clube Cidade Tiradentes às 6 horas da manhã. Medonho deixou a namorada em casa e foi embora. Ele dormiu até as 17 horas. Acordou, tomou banho e se trocou. O foragido retornou ao apartamento de Branca. Mas, dessa vez, ele não tinha passado na padaria para comprar uma garrafa de pinga e quatro latinhas de cerveja, como costumava fazer. Medonho não se sentia bem. Ardia em febre. Branca cuidou dele a noite toda. Ela deu 30 gotas de um analgésico para diminuir a febre. Chegou até a dar banho no homem. Eram 5h30 quando Medonho, depois de reclamar de dores no corpo, pegou no sono. Branca cochilava quando ouviu insistentes batidas na porta:   - Quem é? - É a polícia. Abra a porta. - Polícia? Mas a essa hora. O que vocês querem? - Sabemos que o Medonho está escondido aqui, respondeu um homem, aos gritos. Abra a porta!   Branca abriu. Ela ficou nervosa e tentou demonstrar certa surpresa. Dois investigadores do antigo Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais) entraram no apartamento sem pedir autorização. Foram invadindo. Ambos não portavam mandado de busca e apreensão. Branca também não pediu. Medonho, ainda febril, acordou assustado com o cano do revólver 38 prateado, engatilhado, encostado em sua cabeça:   - Levanta, vagabundo! A casa caiu. Você está em cana, disse um dos investigadores. - Tudo bem, senhor, tudo bem. Estou desarmado, não vou resistir, disse Medonho, levantando as mãos, aos olhares perplexos da namorada. Branca ainda fez um teatro danado e mentiu como se fosse uma atriz em cena: - Você não me disse que era criminoso nem foragido! Seu grande filho da puta, desabafou a mulher, na única reação que poderia ter para também não ser levada pelos policiais. - Desculpa, princesa, eu ia te contar, mas fiquei sem coragem, completou o assaltante, também encenando.   Medonho foi algemado com as mãos para trás. A maioria dos moradores do prédio ainda dormia e não viu o assaltante ser jogado de qualquer jeito no camburão da Veraneio velha, amassada, caindo aos pedaços. Medonho foi levado ao antigo prédio do Deic, na Rua Brigadeiro Tobias, região central da Capital paulista. Assim que chegou ao "palácio da polícia", foi conduzido para uma sala na Delegacia de Roubos. Os policiais o penduraram no pau-de-arara e o torturaram. Queriam que ele confessasse o assalto a uma loja de roupas de grife. Essa era a especialidade do assaltante. Só roubava butiques famosas. Sua preferência eram as calças jeans, qualquer marca. Medonho tinha um receptador. Dinheiro fácil, na mão. Depois de levar choques elétricos, pendurado de cabeça para baixo no cavalete, numa sala escondida da delegacia do Deic, o preso admitiu a autoria do roubo numa loja da região dos Jardins, área nobre da Zona Sul paulistana. Mas mesmo com a sessão de tortura, Medonho não entregou o parceiro de assalto e que também havia fugido com ele do distrito policial. Assumiu a bronca sozinho. Os investigadores do Deic só descobriram o esconderijo de Medonho graças a um ganso. O assaltante foi Cagüetado:   - Pensou que a gente não iria descobrir seu endereço, ladrão? Você se enganou, comentou sorrindo um policial enquanto tirava Medonho, quase desmaiado, do pau-de-arara.   Dois dias depois, Medonho, ainda com vários hematomas no corpo, foi transferido para a Casa de Detenção, no Carandiru - até então, o maior presídio da América Latina - que ficava na Zona Norte de São Paulo. Lá ele ficou em trânsito. Como era condenado, já na manhã seguinte o ladrão foi colocado em um bonde e removido para a vizinha Penitenciária do Estado, também no Complexo do Carandiru. A cela 666 (número da Besta do Apocalipse na Bíblia Sagrada), no pavilhão 3, era o novo barraco do criminoso. Naquela ala estavam os presos mais perigosos do Estado.   Branca passou duas semanas sem notícias do namorado. Numa manhã de maio de 1990, véspera do Dia das Mães, um advogado a procurou:   - Meu cliente me pediu para lhe procurar e avisar que ele está na Penitenciária do Estado. Seu nome é Medonho. - Ele está bem? - perguntou Branca. - Sim, respondeu o advogado. A senhora tem de ir ao presídio, lá na Avenida General Ataliba Leonel, para preencher uns papéis e colocar seu nome no rol de visitas dele. - Nossa, é longe demais, reclamou Branca. - Mas a senhora só poderá visitá-lo daqui a um mês mais ou menos. É que ele está em R.O. (Regime de Observação), explicou o advogado. - Está bem. Obrigada, senhor.   Aos poucos, Branca foi aprendendo o funcionamento e o dia-a-dia de uma prisão. Num fi m de semana de junho, na comemoração do Dia dos Namorados, ela foi visitar Medonho pela primeira vez. A mulher nunca havia colocado os pés numa cadeia. Estava ansiosa. Seu corpo tremia. Branca passou pela rigorosa revista. Sentiu-se constrangida e humilhada por ter de ficar nua e de fazer as horríveis flexões para provar que não levava drogas nos órgãos genitais. Naquela época, os presídios ainda não contavam com detectores de metal.   Liberada para entrar na unidade, Branca pegou o jumbo para entregar ao namorado. Levava refrigerantes, torta de frango, bolo de fubá (o preferido de Medonho), além de dois pacotes de Continental. O cigarro era a moeda nas cadeias. Branca atravessou 14 portões até chegar ao pavilhão 3 da Penitenciária do Estado. Crianças corriam pelos corredores e galerias para abraçar os pais. Mulheres beijavam seus maridos como se fosse pela última vez. O clima era de alegria no presídio. É sempre assim em dia de visitas. Branca subiu as escadas e foi até o 3º andar do pavilhão 3, onde fi cava a cela 666. Medonho a aguardava e seu coração batia mais forte. Ele tinha limpado e decorado o xadrez para receber a namorada. Cuidou de tudo. Colocou até bom ar na cela para deixá-la mais cheirosa. O quieto estava esticado ao redor da cama do detento. Apesar de ser individual, a cela de Medonho tinha um quieto. A visita íntima já havia sido liberada nos presídios paulistas. Segundo agentes penitenciários, a autorização foi dada no governo Franco Montoro pelo secretário da Justiça, José Carlos Dias.   Branca entrou no barraco de Medonho. Seu rosto estampava alegria e ansiedade. Nunca havia estado num presídio antes. O casal se abraçou e se beijou. O preso fechou a porta de aço do xadrez e colocou no guichê - pequena abertura por onde os funcionários entregam o bandeco - um papelão com um coração vermelho desenhado e com a inscrição em letras pretas: Ocupado. Não perturbe. O casal foi direto para a pedra. Medonho esticou o quieto. Os dois transaram. Era a primeira visita íntima de Branca na cadeia. Naquele domingo de junho, Medonho ficou feliz por reencontrar a mulher. Mas havia uma tristeza e um aperto no seu coração. Depois de ter transado com Branca, ele tomou um gole de café, acendeu um cigarro, ofereceu um para a mulher e fez o desabafo:   - Pensei que o gravata não fosse dar o recado pra você. - Gravata? - indagou a visitante. - É, o gravata, o anel, é assim que a gente chama os advogados. Pensei que ele não fosse lhe procurar. - Ah, ele foi sim. E foi muito educado. - Caramba, princesa! Eu tinha tantos planos pra gente lá na rua. Mas estou ferrado! Tenho uma longa condenação, muitos dias para tirar aqui. Vou ter de puxar 59 anos, seis meses e 50 dias de cadeia, avisou o preso, com a sentença decorada. - Fazer o quê? Quem sabe você foge de novo, brincou Branca, sorrindo.   Eles não pareciam mais um casal de namorados, mas marido e mulher. Às 17 horas, terminou o horário de visitas e Branca teve de ir embora. Ambos se despediram. Ela chorou muito, mas prometeu nunca abandoná-lo na prisão. Medonho também ficou triste na cela vazia e silenciosa. Ele esperou a mulher sair para enxugar as lágrimas. Não chorou na frente dela. As visitas continuaram. Branca não perdia um dia sequer. Era como se ela também cumprisse a pena. Medonho tinha em sua extensa ficha criminal nove artigos: 157 (roubo) e 121 (homicídio), além de um processo por falsidade ideológica. Ele ficou preso seis anos na Penitenciária do Estado. Branca não faltou a um dia de visitas.   A cela 666, individual, foi o quarto conjugal do casal. Foi lá que ela concebeu, em março de 1993, o filho Matheus. Medonho ficou eufórico ao saber que seria pai. Comemorou com Maria Louca, a aguardente feita pelos presos. No ano seguinte veio outra gravidez, a de Mathias. Era o sétimo filho de Branca. Em 28 de janeiro de 1995, quando Mathias nasceu, o Primeiro Comando da Capital (PCC), segundo a polícia, já tinha um ano e cinco meses de existência. O Partido do Crime, como é chamado, estava enraizado na Penitenciária do Estado, um de seus principais redutos.   Medonho não era batizado no PCC. Mas gozava do respeito dos integrantes da facção. Era um preso considerado no mundo do crime. O assaltante participou de dezenas de tentativas de fugas. Por isso, passou a ser transferido com freqüência para outras unidades. Foi de bonde para as Penitenciárias de Parelheiros, Parada Neto, em Guarulhos, Aparecidinha, em Sorocaba, e Presidente Bernardes 1. Nessa última, o condenado aprontou de novo. Tentou fugir. Foi removido para Marília, onde passou seis meses. Depois o transferiram para São Vicente. Mais uma vez ele tentou escapar. Pegou o bonde para Franco da Rocha. Lá fi cou pouco tempo. Foi parar na Penitenciária Adriano Marrey, em Guarulhos. Era fevereiro de 2001, o PCC comandava a primeira rebelião em série da história do país. Um dos líderes do motim na Adriano Marrey era Medonho. Três meses depois da megarrebelião, ele e detentos de outras unidades foram mandados ao castigo na Penitenciária 1 de Avaré. Para punir os chefes da facção e lideranças dos amotinados, o secretário da Administração Penitenciária, Nagashi Furukawa, baixou uma portaria e criou o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD). Nesse sistema, o detento ficava em cela individual e não tinha direito à visita íntima. O banho de sol no RDD era de duas horas. As visitas eram feitas apenas num dia por semana, geralmente no sábado ou domingo. Detentos e visitantes ficavam no pátio, separados por uma tela. O preso também não  tinha acesso a rádio, TV, jornal ou revista.   Assim como outras mulheres de presos, Branca também pegou vários bondes para visitar o marido. Até que, em junho de 2001, foi convidada por duas amigas para assumir uma importante missão. Foi assim que ela conheceu outras mulheres de presos, com quem fez boas amizades.

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