Jogo da memória para além do tempo

Em 'O Sentido de Um Fim', Booker Prize de 2011, o britânico Julian Barnes constrói uma narrativa linear – e primorosa

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Por Marcelo Rubens Paiva - O Estado de S.Paulo
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O escritor britânico Julian Barnes era mais aclamado na França do que em casa. Tudo mudou em 2011 quando lançou O Sentido de Um Fim. Em outubro, dois meses depois do lançamento, foi anunciado vencedor do Brooker Prize - o mais importante do Reino Unido - e acabou na lista dos mais vendidos. Stella Rimington, presidente do júri, afirmou que “O Sentido de Um Fim tem os registros da clássica literatura inglesa. Ele é primorosamente bem escrito, com uma trama muito bem desenhada, e traz profundas revelações a cada leitura”. É verdade. O autor, acadêmico que começou escrevendo livros policiais nos anos 1980 com o pseudônimo Dan Kavanagh, rema com facilidade pela filosofia, história, traça uma narrativa linear, joga com a memória e, diferentemente de Papagaio de Flaubert, não desembarca nas praias do experimentalismo. Na literatura contemporânea, a maioria dos autores está mais interessada em contar boas histórias do que inventar expressões ou unir palavras, buscar ou pesquisar narrativas com inversões e tramas picotadas. Roberto Bolaño, Philip Roth, Jonathan Franzen e outros seguem o pão-pão-queijo-queijo literário com distância segura da artilharia das antigas vanguardas. Barnes constrói uma trama simples e sedutora. Quatro amigos do “colegial” se destacam não por suas habilidades esportivas e sexuais. Diz Tony, o narrador: “Sim, é claro que éramos pretensiosos. Para que mais serve a juventude?” Causavam terror e admiração entre os professores ao contestar as origens da 1.ª Guerra. Usavam termos como “Weltanschaung” e “Sturm und Drang”, gostavam de dizer “isto é filosoficamente autoevidente”, usavam relógio virado para o lado de dentro do pulso, como quem ignora o tempo. Adrian, o mais inteligente e misterioso, conseguia encontrar contradições nas aulas e costumava citar: “A história é aquela certeza fabricada no instante em que as imperfeições da memória se encontram com as falhas de documentação”. Liam o Manifesto Comunista, Wittgenstein, Camus, Nietzsche, Orwell, Huxley. Eram meritocratas e anarquistas e afirmavam que todos os sistemas políticos e sociais pareciam corruptos. Não aceitavam outra alternativa que não fosse o caos hedonista. Apesar de estarmos nos anos 1960, Tony escutava Dvorák, Tchaikovsky e a trilha do filme Um Homem e Uma Mulher. “A maioria das pessoas não experimentou os anos de 1960 até os anos 1970. O que significa, logicamente, que a maioria das pessoas nos anos 1960 ainda estava experimentando os 1950.” Eventualmente, o autor provoca, interfere: “Será que a conversa foi exatamente assim? Provavelmente não. Mas é como eu me lembro dela”. E o narrador imagina que num romance as coisas teriam sido diferentes. “De que adiantava ter uma situação digna de ficção, se o protagonista não se comportava como teria se comportado num livro?” Se sentiu muito triste depois de beber numa festa. E quando uma garota passou e perguntou se ele estava bem, ele respondeu “acho que sou maníaco-depressivo”, pois achou mais interessante do que dizer “estou um pouco triste”. Até conhecer Veronica, garota impulsiva, com quem ficava nos agarros, sem saber se era virgem. Mas não podia reclamar, pois as garotas estavam permitindo muito mais do que suas mães tinham permitido. Chegou a conhecer a família da pretendente, que de repente o dispensou. Ironicamente, tiveram o chamado “sexo completo” depois do rompimento. Tomou como lema da vida “time is on my side, yes it is” (Rolling Stones), se afastou dos amigos, até saber que a ex-namorada o trocou por Adrian, e que este, aos 22 anos de idade, se matou metodicamente, deixando um bilhete na porta do seu quarto em Cambridge: “Não entre. Chame a polícia”. “Eu sobrevivi. ‘Ele sobreviveu para contar a história’ - é assim que as pessoas falam, não é? A história não se resume às mentiras dos vencedores, como um dia afirmei. Ela é feita mais das lembranças dos sobreviventes, que, geralmente, não são nem vitoriosos nem derrotados.” Tony se aposenta. Aos 60 anos, solitário, recicla, limpa, decora o apartamento para conservar seu valor, já fez seu testamento, tem consciência de que as relações com a filha, genro, netos e ex-mulher, se não são perfeitas, são pelo menos sólidas. Diferentemente de Roth, que trata a velhice como um estorvo, e a degradação do corpo como a degradação do desejo, o protagonista de Barnes se conforma: “Aquelas pequenas diferenças de idade, tão cruciais e tão graves quando somos jovens, se desfazem. Nós acabamos todos pertencendo à mesma categoria, a dos não jovens. Eu mesmo nunca liguei para isso”. Até receber uma correspondência inusitada, que o remete ao passado, 40 anos atrás. A mãe de Veronica morreu e deixou de herança 500 libras e o diário de Adrian, que poderia desfazer as reiterações banais da memória, provocar alguma coisa, embora não se saiba o quê. Quando se acredita que o passado está assentado e digerido, seus fantasmas reaparecem para negar a lógica traçada e recontar a história: “Quem foi que disse que a memória é o que nós achamos que tínhamos esquecido? E devia ser óbvio para nós que o tempo não age como um fixador, e sim como um solvente”. Ao final, descobre-se que alguns atos inconsequentes causaram dor, que uma carta escrita há 40 anos sob as marcas da raiva e do ciúme deu em morte - e que o que parece ser não é.MARCELO RUBENS PAIVA É ESCRITOR, JORNALISTA E CRONISTA DO CADERNO 2

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