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Inventor de si mesmo

Posso imaginar a cena, transcorrida em São Paulo quase 20 anos antes de minha inconsequente chegada ao mundo.Em algum momento de 1927, o carteiro faz soar a campainha de uma casa de dois pisos na rua Lopes Chaves, bairro da Barra Funda, e alguém, provavelmente a empregada (instituição que, malgrado a Lei Áurea já quarentona, costumava, nas casas das boas famílias, durar a vida inteira), depois de enxugar as mãos no avental, recebe uma carta, postada dias antes numa remota biboca de nome Cataguases, nas profundas de Minas Gerais.

Por Humberto Werneck
Atualização:

Mal se fechou a porta, a carta é levada, no piso de cima, ao destinatário, que vem a ser o Exmo. Sr. Mário de Andrade, escritor que, aos 32 anos de idade (sim, naquele tempo era-se velho ainda jovem), já é autor conhecido e reconhecido, figura de destaque supra estadual até por haver promovido, 5 anos antes, com outros arruaceiros, a tal de Semana de Arte Moderna. O Sr. Mário de Andrade (era assim, com cerimoniosa distância, que os críticos de então se referiam aos autores, ainda quando fossem eles da sua intimidade), que anda caraminholando uma “rapsódia” de esquisito nome - Macunaíma -, a ser desovada de um só jato no ano seguinte, abre envelope e sorriso ao constatar que acaba de receber carta de Rosário Fusco. A partir deste ponto, posso a imaginação, pois tudo o que está por vir comprovadamente aconteceu. E o que quer aquele moleque de 17 anos, filho de lavadeira e imigrante italiano? Que Mário de Andrade lhe mande “uma bosta qualquer” para publicar na Verde, revista literária que ele e alguns comparsas engatilhavam na falta de assunto de sua cidadezinha de 5 mil habitantes. Encantado com a irreverência do pedido, Mário mandou mais que “uma bosta” - o poema Rondó do Brigadeiro, publicado, em outubro daquele ano, no segundo dos 6 números que teria a Verde até morrer, em 1929. Colaborou também nas demais edições da revista - uma das publicações históricas do Modernismo, aliás, que a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo está relançando nesta semana, em bem cuidadas edições fac-similares, numa caixa em que embalou também Estética, Klaxon, Revista de Antropofagia, A Revista e Terra Roxa. Caçula da turma da Verde, ao lado de Guilhermino Cesar, Ascânio Lopes, Enrique de Resende e Francisco Inácio Peixoto, Rosário Fusco foi de todos o que mais frutificou. Quando um emaranhado de doenças o levou, aos 67 anos, era autor de obra nem um pouco biodegradável, hoje lamentavelmente um tanto esquecida, em que sobressaem os romances O Agressor, O Livro de João, Carta à Noiva e O Dia do Juízo. Foi também poeta, dramaturgo, jornalista e crítico literário. O “molecote de calças curtas” de quem Guilhermino haverá de se lembrar forçou as portas da literatura, disputando atrevidamente espaço no Rio de Janeiro, centro do poder cultural de seu tempo, onde se formou em direito e veio a se aposentar como procurador do Estado, antes de retornar e acabar seus dias em Cataguases. Nesse meio tempo, passou longa temporada em Paris, como bolsista do governo francês para estudar estética na Sorbonne. Alto, corpulento, ruidoso, mulato como sua mãe, o enfant terrible da Verde deixou também um divertido folclore. Ao amigo Otto Lara Resende, dava a impressão de ser “mais personagem do que escritor, mais invenção de si mesmo do que inventor de outros seres”. Teve 6 filhos com 6 mulheres, e com a última, a francesa Annie Noëlle Françoise Petitjean, casou-se 7 vezes, ainda que os dois tenham vivido uma só e breve separação. Gostavam de casar, me contou o filho do casal, Vicente, e o fizeram em templos dos mais diversos cultos.  Foi Vicente quem os apadrinhou nas derradeiras bodas, celebradas na igreja católica em 1974. Tinha 11 anos de idade e nascera Rosário François Rosário Fusco, mas, aos 6, o pai lhe reescreveu o nome para Vicente Rosário Fusco Rosário François Petitjean de Souza Guerra - para que pudesse, justificou o autor da bizarria onomástica, ser chamado indiferentemente de Fusco Rosário ou de Rosário Fusco. Irrequieto, o escritor quis a certa altura meter-se na política, e se candidatou a uma cadeira na Câmara com este apelo eleitoral: “Tenha fé no Rosário. Na hora de votar, não fique confuso, fique com Fusco. Um Rosário vale três terços...” Não se elegeu. Mas talvez nem quisesse mesmo ser deputado, escreveu Otto na morte dele, em 1977, e sim “amar federalmente” a sua Cataguases.

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