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Interlúdio Olímpico

Em sua página no Twitter, Michiko Kakutani brindou os nossos Jogos Olímpicos com várias postagens sobre o Rio de outros tempos e outros feitos. Simpático. A crítica literária do New York Times fixou-se na imagem da cidade perpetuada pelo cinema. Cômodo. Por duvidar que ela conheça Manuel Antonio de Almeida, Machado (afora Brás Cubas), Lima Barreto, Marques Rebelo ou mesmo Rubem Fonseca, e inútil seria mencioná-los pois não foram (ou apenas dois foram) traduzidos para o inglês, a opção pelo cinema nos livrou, por exemplo, de uma incômoda referência a Tristes Trópicos, o muito lido ensaio de Claude Lévi-Strauss que começa pichando a paisagem carioca, comparando a entrada da Baía de Guanabara a uma boca desdentada. 

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Kakutani fez uma escolha esperta, valorizada pelo drible a um clichê (Orfeu Negro), por evitar produções relativamente recentes (007 Contra o Foguete da Morte, Feitiço do Rio) e tirar do baú o melhor filme americano ambientado no Rio, Interlúdio (Notorious), que também considero a melhor criação de Hitchcock nos anos 1940. 

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Se a parte carioca do inacabado It’s All True, de Orson Welles, tivesse sobrevivido com a mesma fartura das passagens rodadas nas areias do Ceará, bem valeria uma postagem, desde que não sacrificasse Voando Para o Rio, filme artisticamente medíocre porém relevante por ter sido a primeira produção de Hollywood tendo o Rio como pano de fundo. 

Pano de fundo, literalmente. Ou quase isso. A expressão correta é fundos projetados (back projection), antiga técnica de iludir a plateia, dando a impressão de que os atores estão realmente no cenário em que aparecem. Ninguém do elenco de Voando Para o Rio (Dolores Del Rio, Gene Raymond, Raul Roulien e a dupla estreante Fred Astaire-Ginger Rogers) veio ao Brasil. O Atlantico Hotel em que se hospedam é uma contrafação do Copacabana Palace e as cenas de acrobacia aérea sobre as praias da zona sul carioca foram filmadas na californiana Malibu. 

Produzido pela RKO, fazia parte de um pacote promocional da “política de boa vizinhança” de Roosevelt, da ampliação da rota sul-americana da PanAm e dos serviços telegráficos da RCA. Era um tremendo merchandising. Na época, RKO era ligada à RCA, que, juntas, administravam o Radio City Music Hall, onde Voando Para o Rio estreou retumbante no Natal de 1933.

Revi o filme dias atrás. A mui leal e heroica só entra em cena aos 32 minutos, e em seguida, como direi?, murcha – que nem murchava nas duas comédias hollywoodianas de Carmen Miranda ambientadas aqui, Uma Noite no Rio e Romance Carioca. Em Interlúdio, o Rio surge na tela com 18 minutos de bola rolando, ponto final de um voo também iniciado em Miami. O hotel em que Ingrid Bergman se hospeda tem Palace no nome e é outra contrafação do Copacabana Palace. 

Nem a atriz, nem Hitchcock nem ninguém do elenco deram as caras por aqui: uma equipe de segunda unidade tomou vistas da cidade, que, projetadas nos estúdios da mesma RKO, puseram Ingrid e Cary Grant em vários de seus pontos turísticos (Avenida Atlântica, Jockey Clube), com mais frequência na Cinelândia, até porque é lá, instalados no prédio da Biblioteca Nacional, que ficam a embaixada dos EUA e os escritórios da CIA. Atrás da praça, o Palácio Monroe, que em 1946 abrigava o Senado Federal. Bette Davis e Paul Henreid tampouco vieram ao Rio filmar in loco Estranha Passageira (Now Voyager), quatro anos antes. Singraram a baía desdenhada por Lévi-Strauss a bordo de um transatlântico que, na verdade, nunca zarpou dos estúdios da Warner, em Hollywood. De navio também chegaria ao porto do Rio, cinco anos depois, a dupla Bing Crosby-Bob Hope, clandestina como convém a uma chanchada. Uma das mais chochas da franquia Road to, A Caminho do Rio também foi rodada, como aliás toda a série globetrotter, nos estúdios da Paramount.  Lana Turner passeou mais de uma vez por estas paragens, mas na hora de filmar Meu Amor Brasileiro (Latin Lover), abobrinha romântica, safra 1953, a Metro preferiu recriar a cidade em Culver City, com outro falso Copacabana Palace, embora prodigiosamente dotado de uma varanda de onde podiam ser vistos, quase que lado a lado, o Pão de Açúcar e o Corcovado, sincretismo topográfico que ao Criador escapou.  Em Interlúdio, ao vislumbrar pela primeira vez a Cidade Maravilhosa, Ingrid Bergman comentava: “Que linda!”. Bem, isso é o que se lê na legenda em português. Brasileirada do tradutor. Ao ouvir Cary Grant informá-la de que estavam aterrissando no Rio, Ingrid dava uma espiada protocolar pela janela, e dizia: “Sim, Rio”. Apenas isso e sem demonstrar o menor entusiasmo. Em outras circunstâncias, talvez reagisse de forma diferente, mas a personagem tinha conflitos demais na cabeça para apreciar qualquer paisagem.  Já Nora Taylor, a personagem de Lana Turner em Meu Amor Brasileiro, desembarcava com o mood inverso. Antes mesmo de preencher a ficha do hotel, confessava-se inebriada pela atmosfera afrodisíaca da cidade, sugerindo aos cariocas que engarrafassem o ar do Rio para exportação. Embora enamorada de um jogador de polo conterrâneo, caía de quatro por um criador de cavalos nativo, Roberto Santos, o latin lover do título, interpretado pelo mexicano Ricardo Montalban. Para seduzi-lo, a deslumbrada Nora até pedia a um professor que lhe ensinasse a dizer em português “You have beautiful horses, darling”. Pausadamente, o professor ensinava: “Você tem cavalos lindos, querido”.  Esse é o único filme cuja versão original é inferior à dublada, involuntariamente surrealista. Na versão dublada, que há décadas vi na televisão, Nora pede “Como se diz, em português, você tem cavalos lindos, querido?”, e o professor, escandindo sílaba por sílaba, responde: “Vo-cê tem ca-va-los lin-dos, que-ri-do”. Com sotaque, of course. Hilariante. O haras do galante brasileiro fica a poucos quilômetros (que mais parecem metros) da zona sul do Rio. Melosas cantorias cucarachas ao ar livre animam suas noites enluaradas; os cavalos são lindos, o latin lover não nega fogo, mas no final, como de hábito, o “estrangeiro” acaba preterido pelo galã americano. Em Voando Para o Rio o brasileiro Raul Roulien também perdia a “brasileira” Dolores Del Rio para o rival adventício. Pelo visto, o ar afrodisíaco do Rio só beneficiava os gringos.