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Influências de Schopenhauer

A sombra do pensamento do filósofo – 150 anos após sua morte – na psicanálise, nas letras e em outras artes foi abordada pelo caderno Suplemento Literário, do Estado, em 25 de junho de 1960

Por Anatol Rosenfeld
Atualização:

O centenario da morte de Arthur Schopenhauer não parece estar produzindo, por ora, repercussão digna de nota. Com efeito, de certo modo é dificil “notar” este filosofo: determinadas tendencias e teorias suas penetraram profundamente na cultura ocidental, amalgamando-se de tal forma aos habitos de pensar e sentir europeus e americanos, que mal se consegue distingui-las como tais. Estão no amago da nossa consciencia, talvez se diria melhor do nosso inconsciente, para respeitar a terminologia de dois dos discipulos de Schopenhauer – Eduard von Hartmann, o filosofo, e Freud, o psicologo do inconsciente. Parece, aliás, que Freud, em alguma parte, negou a influencia de Schopenhauer sobre seu pensamento. Sem duvida se trata, no caso, de uma atitude subjetivamente honesta. É que as concepções do pessimista, embora elaboradas e tornadas publicas no inicio do seculo passado, em plena época romantica, somente depois da abortada revolução alemã de 1848 encontraram clima propicio. Já pelos fins do século, na fase da formação de Freud, a atmosfera estava de tal modo impregnada daquele pensamento que não se podia evitar a “contaminação”.

 

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Freud é precisamente um dos intermediarios mais importantes entre nós e a epopéia filosofica da vontade irracional de Schopenhauer; vontade metafísica que, ao gerar a inteligencia humana (o “ego” freudiano), de inicio mero instrumento a serviço desse sinistro impulso de viver, cria ao mesmo tempo a força de auto-redenção que a libertará de seus conflitos e cegos anseios. Cabe ao princípio inteligente uma tarefa mística e redentora que na psicologia de Freud se tornará em função terapeutica, capaz de levar à cura dos conflitos inconscientes, pela sua elevação ao nivel da consciencia.

 

Teorias da psicologia moderna como as da fuga para a doença, da racionalização, do ressentimento, dos lapsos cotidianos já foram expostas por Schopenhauer. Freud, de alguma forma, parece ter “recalcado” edipianamente essa poderosa influencia do seu pai espiritual. A propria teoria do recalque, aliás, já havia sido formulada pelo solitario comilão de Francfort que até introduziu o termo alemão “verdrängen” (reprimir) para designar este mecanismo psiquico.

 

O foco da vontade schopenhaueriana é o impulso sexual. É através desse impulso que se manifesta, da forma mais veemente, a inconsciente vontade de viver. A filosofia de Schopenhauer é a primeira e unica em que o sexo, concebido como o nucleo de todos os males, atinge a um “status” metafísico. O que neste contexto importa é a posição central que cabe à vontade (e ao seu foco sexual) e não a sua valorização positiva ou negativa. Basta uma “pequena” inversão dos valores para o pessimismo de Schopenhauer se converter no “otimismo heroico” de Nietzsche e para a vontade de viver – que deve ser negada e aniquilada – se transformar na vontade do poder, que deve ser afirmada e enaltecida.

Considerando-se estes fatos, particularmente o destaque dado ao impulso sexual, é evidente a justeza do que afirma Thomas Mann: “Schopenhauer, como psicologo da vontade, é o pai de toda a psicologia moderna... A verificação... de que o intelecto (antes de se revoltar contra a vontade e assumir a sua função redentora. Nota do autor) só serve para obsequiar a vontade, justificando-a e munindo-a de motivos muitas vezes falazes e autoenganosos... contém toda uma psicologia ceticopessimista, teoria dirigida para o desmascaramento inexoravel e que não só prepara a psicanalise, mas que em verdade desde logo chega a sê-la”.

 

É escusado falar da imensa influência que Schopenhauer exerceu sobre a literatura e arte modernas, quer diretamente, quer através de Nietzsche, Freud e seus adeptos, quer ainda suscitando em circulos amplos a ocupação mais ou menos séria com o Budismo e o pensamento hindu. Tal influencia, que atingiu não só artistas e escritores, mas também vastos setores da burguesia – ao passo que os filosofos especializados nunca o tiveram em alta conta – explica-se pelo fascinio morbido do seu pessimismo, pela atração do seu pansexualismo, pelo recurso ao pensamento exotico da India (de muito agrado ao esnobismo internacional) e, talvez, ainda pela função ideologica de um sistema que, eliminando a historia como mero véu de Maia, dá aos males sociais uma justificação metafísica, mercê da critica ao proprio universo já que não é – como para Leibniz – o melhor e sim o pior de todos os mundos possiveis. Entende-se porque Schopenhauer se tornou o filosofo querido dos circulos mais conservadores. Mas a imensa força de penetração deste pensamento explica-se, antes de tudo, pelo fato de seu autor ser, ao lado de Nietzsche, o maior entre os escritores filosoficos alemães. O Mundo como Vontade e Representação é uma verdadeira obra de arte, cuja composição rigorosa, em quatro partes, foi comparada aos quatro movimentos de uma sinfonia.

 

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O seu estilo, cuja retorica, de equilibrio classico, ama vestir-se de citações latinas e gregas, seduz pela tensão que se estabelece entre as sinistras estações percorridas pela vontade na sua paixão dolorosa e a elegante serenidade com que este inferno é apresentado. É dificil escapar à magia da severa ascese formal com que nesta obra se disciplina um sentimento de vida voluptuoso, de forte cunho sadomasoquista e surpreendente semelhança ao de Baudelaire. Há algo de selvagem na urbanidade, algo de triunfal na amargura com que descreve as infinitas misérias humanas. Quanto de “representação” sutil há no mundo deste desmascarador da vontade bruta – e quanto de superação, dominio e transfiguração da condição humana no dandismo mortificado deste estilo de simplicidade requintada. É grande a tentação de valorizar Schopenhauer antes de tudo como artista. Em termos filosoficos rigorosos, afigura-se insustentavel a teoria incoerente da vontade irracional que, embora sendo a unica realidade metafisica, gera o principio inteligente que se sublevará contra ela (como os filhos contra o patriarca na teoria freudiana), acabando por aniquilá-la e por estabelecer o reino do Nirvana. Mas essa contradição transforma-se, na prosa magistral da obra, em força estetica irresistivel. O artista demonstra o que o filosofo nega: a vitoria da ordem sobre o caos, sem que isso implique em Nirvana nenhum. Ao contrario, o niilismo e o proprio sistema do filosofo são constantemente desmentidos pelo estilo do escritor e pela magnifica composição da sua obra.

 

Não admira que a estetica seja parte importante deste sistema. A exaltação da arte como redentora (embora apenas temporaria) do homem atribulado pela tortura da vontade nunca satisfeita ou, quando satisfeita, pelo vazio ainda mais torturante do tedio – essa exaltação propicia à arte um halo quase religioso. É precisamente essa função de “surrogato” da religião que a arte irá assumir entre os simbolistas e decadentes do “fim du siécle”. E se nem todos sofreram a influencia direta de Schopenhauer – como a sofreram por exemplo Mallarmé e Huysmans – é pelo menos através da musica de Wagner que se inebriam com a quintessencia do sentimento de vida schopenhaueriano; sentimento que Wagner exprimiu particularmente no seu “Tristão”, mercê de uma afinidade profunda, por mais que tenha falhado na interpretação do pensamento de Schopenhauer.

 

A arte como redentora: é na contemplação estetica que o apreciador se liberta da sua individualidade enredada no mundo relacional dos desejos e interesses vitais, elevando-se à intuição das idéias platonicas, representações eternas da vontade metafisica nas suas diversas manifestações. Já não o prendem o Onde, Quando e Por que, nesta comunhão com a forma pura. De tal modo se abre, na serena visão estetica, ao belo que este como que lhe invade a consciencia até a borda. É um perder-se total no objeto e, decorrendo daí, o olvido absoluto da propria individualidade empirica. O apreciador, liberto de espaço, tempo e causalidade, transforma-se em puro sujeito da intuição, feito “claro espelho do objeto”. Não se pode mais separar o contemplador da contemplação e do objeto contemplado: tudo se confunde nesta identificação, nesta união mistica suscitada por uma inteligencia não precisamente voltairiana. Emancipado do “nefasto impulso da vontade”, o apreciador “celebra o sabado do trabalho forçado”, o chicote esclavagista dos desejos é abolido. Cessa a dor e reina aquela paz que Epicuro exaltou como sumo bem e estado dos deuses.

 

Essa “manumissão schopenhaueriana” – na expressão de Augusto dos Anjos – é uma verdadeira “catarse”, num sentido mais primitivo e imediato do que o de Aristoteles: “catarse” orfica, “desencarnação”, ascensão da alma depois de liberta das amarras carnais. Eis a concepção mistica que, nas mãos deste estranho adepto de Kant, resultou da sobria formula do “prazer desinteressado” da estetica kantiana.

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Entende-se, a partir desta carga efetiva, a posição privilegiada que Schopenhauer concedeu à musica. Na estetica classica ela ocupa um lugar assaz apagado. Para Kant, a arte literaria é a maior de todas, ainda que atribua à musica a capacidade de produzir certo “prazer confortavel”. Mas seu efeito não é duradouro e, na sua função cultural, é julgada ainda inferior às artes plasticas, embora lhes seja superior na “agradabilidade”. Infelizmente lhe falta “urbanidade”: seu alcance acustico vai mais longe do que dela se exige, ao ponto de amolar os vizinhos e diminuir-lhes o mais precioso dos bens, a liberdade. Quanto a este ponto, as artes plasticas são mais delicadas: é apenas preciso desviar o olhar. Vê-se que a musica tem o defeito dos odores: “Aquele que tira seu lenço perfumado, afeta todos em torno, impondo-lhes – contra a vontade deles – o gozo quando apenas querem respirar”.

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Basta esta curiosa digressão “musical” de Kant para verificar a imensa distancia que vai da sua concepção dir-se-ia sensata da arte – de cuja importancia teve contudo noção profunda e equilibrada – aos excessos de Schopenhauer que atingem ao seu apice quando se refere à musica. Ao passo que todas as outras artes reproduzem apenas as idéias platonicas, sendo, portanto, só representações mediatas da vontade, a musica exprime de modo imediato o proprio ser do mundo. As outras artes “falam só da sombra, ela, porém, da propria essencia”, chegando a ser por isso um “exercicio metafísico”. Sua força redentora, seu poder de sedativo e magia mistica são inexcediveis. Tais concepções, típicas do romantismo, encontrariam entusiastica aceitação entre os simbolistas, tão desejosos de converter a propria palavra em musica.

 

A concepção estetica de Schopenhauer é talvez a que de forma mais radical exalta, em termos filosoficos, a arte como “paliativo” em face das dores do mundo, como recurso de evasão e nirvanico “paradis artificiel”. É evidente que essa teoria suscitou não só exaltado aplauso e sim também duvidas e veemente oposição. Quando Thomas Mann, ocasionalmente, fala com ironia de certa “musica politicamente suspeita”, é contra o complexo Schopenhauer-Wagner que se dirige – complexo, todavia que era parte do seu proprio ser e por cuja superação e sublimação tanto lutou que toda a sua obra veio a ser expressão dessa luta. B. Brecht, quando exige seu famoso “afastamento”, no fundo faz apenas questão de “afastar-se” de Wagner e Schopenhauer. Nada de identificação mistica com idéias platonicas, num estado do extase beato. Muito mais que contra Aristoteles, o teatro epico de Brecht se volve contra uma concepção que visa a narcotizar a vontade, em vez de ativá-la. Em vez de ao sujeito puro da contemplação, a arte de Brecht pretende apelar ao espectador empirico, situado no espaço e tempo e sabendo das causas e dos efeitos. A arte, em vez de libertar o apreciador das dores do mundo, deve, ao contrario, torná-lo consciente delas e das suas causas. Pois o mal – diria Brecht – não é metafísico e intemporal; é historico e, portanto, remediavel.

 

São duas concepções opostas da arte, ambas apoiadas em vetustas tradições, ambas tendo o merito da formulação radical, esclarecedora pela sua unilateralidade. Claro está que a estetica de Schopenhauer não está superada. Ela continua sendo uma presença viva, precisamente para aqueles que dela se acercam a fim de combatê-la.

 

VISÃO ALEMÃ

 

Arthur Schopenhauer nasceu na cidade de Dantzig, em 1788. Sua filosofia foi influenciada de modo significativo por Immanuel Kant e pelo pensamento de Platão. Seu principal trabalho é O Mundo Como Vontade e Representação (1808). Morreu em Frankfurt, no ano de 1860.

 

O berlinense Anatol Rosenfeld (1912-1973) era o responsável pela área de literatura alemã da seção Letras Estrangeiras do Suplemento Literário.

 

O Suplemento Literário circulou no Estado entre 1956 e 1974. Foi mantida aqui a ortografia original do artigo, de 25 de junho de 1960.

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