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Houaiss e suas catedrais

Se ainda estivesse entre nós, Antonio Houaiss completaria, nesta quinta-feira, 100 anos de idade. Haveria muita comemoração, e quase posso apostar que ele, na hora dos agradecimentos, daria um jeito de encaixar, em vez de vulgar centenário, a palavra centúria, atiçando entre os convivas uma urgência de Dicionário Houaiss.

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Ninguém como ele para desencavar raridades vocabulares. Não por pedantaria, posso afirmar, nem para desencadear entre os presentes o que chamo de Efeito Caramuru: o recurso a termos abstrusos capazes de atuar como gás paralisante verbal, de modo a deixar o interlocutor momentaneamente fora de combate, à semelhança do que fez ante uns ameaçadores tupinambás o portuga Diogo Álvares Correia ao disparar para o alto seu bacamarte, revertendo assim uma situação que perigava acabar em churrasco humano.

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Nada disso. Não se tratava de exibicionismo lexicográfico à la Ruy Barbosa. Antonio Houaiss sabia que para cada coisa existe uma palavra, e em cada caso se empenhava em garimpar a mais adequada, com rigor de ourives em busca da gema insubstituível para a joia em andamento. Já contei do dia em que, numa entrevista, Houaiss enveredou pela picada sutilíssima de um sotaque audível apenas no eixo Lisboa-Coimbra – e, no afã de nomear com rigor essa exclusividade, hesitou por uns minutos entre “conímbrico-lisbonense” e “lisboeta-conimbricense”, antes de validar as duas.

Em outra ocasião, Houaiss me falava de pesada desfeita que alguém lhe fizera. E como o senhor reagiu? – indaguei. “Que fiz eu? Reciproquei!”. Aborrecimentos e chatices de variada natureza levavam-no a desabafar: “São coisas de encher quaisquer sacos!”. Num livro de receitas, outro terreno em que era autoridade, integrante de refinada confraria de gastrônomos, Houaiss orientou quem pilotasse o fogão a esperar pelo momento exato em que o conteúdo em ebulição subisse rumo à borda da panela – recomendação que fez, porém, à sua inigualável maneira, referindo-se à “consistência levitante da massa”. Gabava-se de ter traçado esquisitices como gafanhotos, formigas e aranhas vivas. Entrevistado no Roda Viva, revelou que estas últimas, em certo sentido picantes, são também, entre os dentes, crocantes.

Bizarrias quetais não o levavam, porém, a esnobar trivialidades culinárias como os camarões com maionese que me recomendou pedir quando fomos almoçar no Rio Minho, no Centro do Rio de Janeiro. “É pelo simples que se pode aquilatar a proficiência de um cozinheiro”, sentenciou ele. Não se limitou a me recomendar que fosse ao Albamar: que lá pedisse ao garçom fulano, não a qualquer outro, um cherne assim ou assado (assado, se bem me lembro).

No papo ou por escrito, mais de uma vez o vi utilizar a palavra “catedralesco” – e eis que agora, tentando ser preciso como Antonio Houaiss, não encontro adjetivo melhor para algumas das empreitadas em que ele se meteu. A primeira das três traduções brasileiras do Ulisses de James Joyce, por exemplo, lançada em 1966. As enciclopédias Delta Larousse e Mirador. O mastodôntico Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, que registra a grafia de quase todas as 400 mil palavras existentes no idioma. Não nos deixou, porém, contribuição mais catedralesca que o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, com 228.500 palavras, lançado em 2001. Pena que não tenha podido vê-lo impresso, pois morreu dois anos antes, aos 83.

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Ironicamente, talvez Antonio Houaiss não tivesse edificado suas catedrais se perseguições políticas não o tivessem subtraído duas vezes à carreira diplomática: entre 1952 e 1954 e, em definitivo, imediatamente após o golpe militar de 1964. No Itamaraty, não teria tido condições de encarar os descomunais projetos que o ocuparam daí por diante.

É possível, também, que sem perseguição política Houaiss não tivesse entrado na Academia Brasileira de Letras, ao menos nas circunstâncias em que lá chegou, em 1971. O mesmo se dera, aliás, em 1969, com seu amigo e ex-colega João Cabral de Melo Neto, que com ele estivera afastado do Itamaraty, sem vencimentos, nos anos 1950. Não por acaso, esses homens de esquerda chegaram ao Petit Trianon nos primeiros e mais ásperos tempos do AI-5. Certamente sabiam que nenhuma de nossas ditaduras importunou opositores que fossem imortais. Como dizia Otto Lara Resende, “a farda protege o fardão”.