Hamlet com paixão e fúria

PUBLICIDADE

Foto do author Redação
Por Redação
Atualização:

Quando o espetáculo começa, há barulho, gente aos brados, ameaças, ecos de fatos graves. No canto esquerdo do palco, percebe-se uma figura silenciosa e encapuzada. Leva minutos até que se manifeste. É o Hamlet monumental de Thiago Lacerda. São dois fatos distintos, que se encontram. A aparição de um dos mais enigmáticos personagens do teatro e um ator no seu momento maior. Há bibliotecas sobre Shakespeare, suas tramas e linguagem extraordinárias. Estudiosos nem sempre estão de acordo sobre uma invenção dramática, trágico-histórica e romântica que assombra e desafia o mundo, o que liberta o encenador para recriar o Príncipe da Dinamarca à sua maneira. Houve o período do Hamlet ensimesmado a remoer a morte do pai, o rei, crime que contou com a conivência da própria mãe, até se chegar às turbulências, do século 20 em diante, que moldaram um nobre menos vacilante. É o que se viu nas versões de Flávio Rangel com Walmor Chagas (1969), José Celso/Teatro Oficina (2001) e a de Aderbal Freire-Filho com Wagner Moura (2008). Do exterior recebemos a produção do inglês Peter Brook com William Nadylam, um ator negro encarnando o nobre dinamarquês (2002).Hamlet abre comportas de questões existenciais, históricas e filosóficas dentro de uma complexa estrutura política. Focaliza o tempo em que o poder advinha da destruição física dos adversários. Em uma entrevista, Peter Brook, notável conhecedor de Shakespeare, argumentou que a sua época (1564 -1616) não conhecia democracia. Só havia o rei bom ou o rei mau e toda sociedade girava ao redor deles, no fundo ditadores, por serem os únicos modelos sociais. Em meio a tantas figuras manchadas de sangue (Ricardo III, Macbeth), Hamlet representa até alguma alternativa ao mecanismo implacável. Ele não mata imediatamente o assassino do pai, confunde os parentes e amigos com atitudes desconexas e simula indiferença à sua amada Ofélia. Torna-se um estrategista no limite da aparente loucura. Termina, porém, inesquecível. Para Peter Brook é o homem que fracassa de início, mas consegue tomar consciência de que, em dado momento, a ação é o que importa. O gesto concreto além da reflexão lenta. Então avança ao encontro do destino porque o exemplo dado continua depois da morte, mesmo que termine a luta com a frase imortal, "o resto é silencio". O diretor Ron Daniels, filho de ingleses e crescido no Brasil onde iniciou a carreira artística agora internacional, conhece a tradição britânica das grandes vozes e do texto tal como escrito no século 15 e o seu oposto, as tentativas de apresentar uma obra múltipla com sonoridade verbal e imagens cênicas da atualidade. No primeiro caso, encontra-se a arte dramática arqueológica para o público conservador e no segundo o risco da atualização apressada. Na travessia estética e temporal, há acertos e soluções menos felizes no espetáculo de Daniels. A mistura de figurinos numa verdadeira feira de estilos é desconcertante e sem acréscimo à verossimilhança. A lenda remota e a invenção do escritor resistem ao recurso de se colocar o pai de Ofélia e o fantasma do monarca em ternos de hoje. Outros personagens trajam fardas dos anos 30 (Franco e Mussolini) ou capacetes de motociclistas. As brumas e a dimensão cósmica da narrativa estão sublinhadas com precisão na bela cenografia abstrata de André Cortez. Por sorte há bons intérpretes que fazem o melhor dentro da linha de direção (Eduardo Semerjian, Roney Facchini, Selma Egrei, Antonio Petrin). Parece que não houve tempo para Ron Daniels afinar o elenco e dar o tom exato ao que projetou. Acontece mesmo em se tratando de um artista tarimbado e audacioso. A voragem subterrânea ou explícita de Hamlet está em Thiago Lacerda com as vestes daqueles dias antigos e uma interpretação apaixonada que o eleva como ator à altura da grandeza do texto. Crítica: Jefferson Del Rios

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.