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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|Giovanni Bruno, o anarello, se foi

Italiano, palmeirense fanático, Giovanni Bruno morreu no dia do centenário do seu time, nesta terça-feira, 26. Com ele se fechou um pedaço da história de São Paulo, da gastronomia ítalo paulistana, da trajetória das cantinas. Giovanni fez parte da saga da família do mítico Gigetto. Deste restaurante partiram garçons e maîtres, que montaram seus próprios negócios e foram bem sucedidos. Giovanni, Fausto, Anselmo, Piolim, Piero, Sargento, Sesto e outros. Nesta semana se encerrou a vida de um personagem da cidade, conhecido por todos, amado, venerado, ele mesmo uma lenda. Italiano de Casalbuono, começou descascando batatas e tornou-se cidadão paulistano, amigo de governadores, ministros, prefeitos, deputados, que frequentavam sua cantina.

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Atualização:

Recebia as mulheres com uma rosa. Nos últimos anos, aos mais chegados, ele não deixava escolher o prato. “Faço o jantar, você faz a conta”, dizia. Sabia o que cada um gostava, não errava. Meu pene à carbonara chegava à mesa na panela. Pagávamos o que achávamos justo, com medo de estar pagando menos, nunca com receio de pagar mais. Era comum, anos atrás, ele chegar e cantar Champanhe, clássico da canção romântica italiana. De Roberto Carlos a Pavarotti e dezenas de jogadores de futebol (de Ademir da Guia a Pelé), celebridades da televisão e política figuram nas fotos das paredes. Os anônimos no entanto tinham idêntico tratamento carinhoso, vip. No final do ano, enviava aos amigos centenas de perus para ceia do Natal.

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Minha geração acompanhou Giovanni, desde que ele era cumim, depois garçom no Gigetto, ainda na Rua Nestor Pestana, diante do Canal 9, TV Excelsior. Todos assinamos notas naquele reduto, espécie de sindicato, agencia, tudo do teatro, cinema e televisão. Ao entrar, procurava-se o setor que estava sendo servido pelo Giovanni. Dos poucos lugares em que o cliente esperava a mesa do seu garçom. De Paulo Autran a Tonia Carrero, Adolfo Celli, de Tarcisio Meira a Gloria Meneses, Elizabeth Henreid, Paulo Goulart, Nicette Bruno, Fulvio Stefanini, Celso Farias, Jairo Arco e Flecha, Jô Soares, Walmor Chagas, Cacilda Becker, Rubens de Falco, Stenio Garcia, Cleyde Iaconnis, Nathalia Timberg, Alberto Daversa, Antunes Filho, Anselmo Duarte, Jardel Filho, Miriam Persia, Leo Villar, Deonisio Azevedo, Flora Geny, Egydio Eccio, Silney Siqueir,a Rberto Freire, Moracy Duval, Itala Nandi, Odete Lara , Ana Maria Nabuco, Abilio Pereira de Almeida, Fernando de Barros, Dener e suas modelos, Irina Greco, Armando Bogus, Aracy Balabanian, Boal, Dina Sfat, Joana Fomm, Apolo Silveira (o fotógrafo da moda e da publicidade), Zuza Homem de Mello, Juca de Oliveira, Eva Wilma, John Herbert, Diana Morel, Maria Della Costa, Ruy Afonso, Bibi ferreira, Consuelo Leandro, Zeloni, Marly Marley, Ary Toledo, Celia Coutinho, Geraldo D’El Rey, Jefferson Del Rios, Edla Van Steen, Walter Hugo Khoury, Izaias Almada, Elis Regina, Solano Ribeiro, Marilia Medalha, a história do cinema, da música, do teatro e do jornalismo passou pelo Gigetto e cada um desses personagens tem ou teve uma história em que Giovanni foi protagonista.

Ele inventou o “banco” de crédito. No fim do mês, duro, você chegava ao Giovanni e confidencia: “preciso de empréstimo”. Ele aguardava e finalmente te conduzia a uma mesa grande de dez, doze pessoas. Quando a conta chegava, ele recolhia o dinheiro de cada um (não havia cartão de crédito, pagava-se pouco com cheque, o que corria era dinheiro vivo) e entregava à pessoa, que assinava a nota e garantia alguns dias de “sobrevida”. Grande maioria desses nomes acima recorreu ao expediente. Os donos do Gigetto sabiam disso, era prática consentida.

Não foi sem razão que depois que Giovanni Bruno deixou o Gigetto e abriu sua cantina, todos foram o acompanharam, jamais esteve só. Ele mudou-se para a Rua Santo Antonio, nós também. Não há quem não se lembre da noite em que o velho pianista parou de tocar e se inclinou sobre o teclado. Tinha morrido. De lá para as proximidades da praça Osvaldo Cruz, depois Rua Martinho Prado, José Maria Lisboa e finalmente para o Paraiso, na rua que acabou ganhando o nome de sua cantina, Il Sogno di Anarello. Anarello era o apelido do imigrante que virou mais paulistano que qualquer quatrocentão.

Na José Maria Lisboa havia uma mesa especial, estrategicamente localizada na saida da cozinha, caminho para o salão. Amigos chegavam, sussurravam , Giovanni os colocava ali. De cada prato que saia da cozinha, o garçom depositava uma piccolissima porzione na mesa perto da coluna. Dois rigatonis, três capeletes, cinco nhoques, e assim por diante. Qual um passarinho, ali se comia. O vinho que sobrava em alguma mesa, vinha para ali. Agradecíamos e partíamos.

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Homem do bem, coração imenso, ficou deprimido quando, pouco tempo atrás, ladrões fizeram um “arrastão” em seu restaurante. Chorou ao ver como seus clientes foram tratados, passou mal, indignou-se a acabrunhou-se. O coração sofrido, várias vezes socorrido, parece ter se entregue de vez. Esse coração que foi personagem. Certa vez, décadas atrás, Giovanni precisou fazer um cateterismo. Assustou-se, foi. Deitado, impaciente, temeroso, seguiu o procedimento. Quando o médico terminou, sorriu e disse: “Tudo bem, seu coração está novo, ainda aguenta anos”. Giovanni deu um salto, tubos que estavam preso ao seu corpo saltaram junto e ele deu um enorme beijo na bochecha do médico, um japonês tímido que se assustou e se encolheu. Desta vez, no dia do seu Palmeiras, o coração não resistiu.

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão
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