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Gilda de Mello e Souza reflete sobre diferentes aspectos da arte

Livro 'A Palavra Afiada' traz opinião da escritora em nove entrevistas

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Por Laura Greenalgh
Atualização:

"Com certeza eu não quis ser como as outras mulheres, preferi me realizar como um homem. Não sei... Hoje fico pensando se não foi esse pecado de orgulho que moveu aquela geração feminina na faculdade." A dona destas palavras, uma das grandes intelectuais brasileiras, certamente as proferiu com voz de contralto, dicção perfeita, beleza e arremate nas frases, sem contar a elegância que sempre a distinguiu. Não faria por menos Gilda de Mello e Souza (1919-2005), escritora, ensaísta, crítica de arte, professora de estética e uma das primeiras mulheres a cursar, nos anos 1930, a recém-fundada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Pois a menina que saiu de Araraquara para se "cultivar" na cidade grande, e que viria marcar a vida acadêmica no País, é o objeto do livro A Palavra Afiada (Ed. Ouro Sobre Azul), lançado nesta quarta, 23, no Centro Universitário Maria Antonia.

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Organizado pela crítica literária Walnice Nogueira Galvão, o livro recupera momentos raros, quase desconhecidos, da mulher que ousou se destacar numa geração de mentes brilhantes, contudo predominantemente masculina. Walnice estruturou o volume em três partes: na primeira, recupera nove entrevistas concedidas por Gilda, ao longo dos anos. Na segunda, reúne escritos e falas. Na terceira, entrega quase como um presente aos leitores a seleção de cartas de Gilda a Mário de Andrade (1893-1945), o primo mais velho, em casa de quem ela morou por longo tempo em São Paulo. Servidas em sequência, as três partes configuram um banquete de ideias, sensibilidades e erudição sem afetação.

Walnice justifica no prefácio por que terá ido atrás de uma Gilda em formato pingue-pongue, respondendo a pesquisadores, escritores ou jornalistas. Acha que nesses encontros é onde justamente se sobressai a "palavra afiada" de uma estudiosa que dominava, como poucos, a arte de conversar. "Em sua voz, a entrevista torna-se um gênero literário, tal a perfeição de suas formulações. Seria perda nossa se essas joias permanecessem esquecidas nas páginas de publicações às vezes obscuras e difíceis de resgatar", escreve Walnice, para quem Gilda concedeu uma das entrevistas do livro, em 1984. Dentre os entrevistadores, alinham-se também Eva Blay, Augusto Massi, Carlos Augusto Calil, Antonio Dimas, Nelson Aguilar, uma equipe do Instituto de Estudos Brasileiros da USP.

Alguns temas são recorrentes. Seus entrevistadores querem saber de sua origem interiorana, da transferência para a capital e da ousadia de se enfiar numa escola de filosofia moldada segundo padrões europeus, onde os cursos, ministrados em francês, estavam a cargo de intelectuais do calibre de Jean Maugüé, Roger Bastide, Claude Lévi-Strauss. Ao lidar com questões que já lhe soavam familiares, Gilda conseguia rever a mesma história da vida – e não haveria outra para contar –, trançando reminiscências com os fios da originalidade. Há sempre um dado a mais, uma lembrança a mais, uma surpresa a mais em seu itinerário pessoal.

Desdobra-se ao explicar por que, embora filha de dono de terras e criada naquela liberdade de pés descalços na fazenda Santa Isabel, sua família tinha as antenas voltadas para a cidade grande. A mãe não titubeou ao decidir que ela, com 12 anos, viesse morar na capital com a "vovó Iaiá", mãe de Mário de Andrade, no famoso sobrado da rua Lopes Chaves. E assim começa a transição do modelo feminino tradicional para outro que mal se esboçava na esteira de uma formação acadêmica não só inédita no País, como completamente inusitada para moças. Num dos muitos comentários bem-humorados do livro, Gilda conta como seus amigos do interior a receberam de volta, num período de férias: "... me brindando, como era de se esperar, com as inúmeras variantes da clássica quadrinha popular: Menina que sabe muito/É mulher atrapalhada; / Para ser mãe de família/ Saiba pouco ou saiba nada".

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Mário de Andrade atravessa o livro numa grande diagonal. É presença marcante. Ele é quem dá aulas de piano à prima menor. Ele é quem lê, corrige e comenta os primeiros escritos da menina, quando as tias vêm lhe segredar que "Gilda anda escrevendo". Ele é quem a orienta a tentar uma vaga no curso de Filosofia, se era mesmo desejo ser escritora, enfatizando que buscasse formação ampla, eclética, sofisticada, afinal, "no fundo, o que vale é a arte". Ele é quem abre para Gilda sua biblioteca no segundo andar da casa, permitindo que consultasse não só os livros, mas as fichas de leitura, as anotações. Além da gratidão impagável a Mário, Gilda se assume como beneficiária dessa "concepção aberta, totalmente dinâmica do ofício de pensar, uma crença profunda no exercício da inteligência".

Gilda repassa hábitos e preferências daqueles estudantes pioneiros da Filosofia da USP, o ambiente descontraído em sala de aula, a permanente estimulação dos professores franceses, a descoberta do cinema, do teatro, das artes plásticas por uma geração pós-Semana de 1922, que se reunia na Confeitaria Vienense, no centro de São Paulo, para conversar – sem beber. A ponto do cronista Rubem Braga ironizá-los. Para ele, era uma turma que tomava leite maltado e namorava para casar. "E casávamos mesmo", agregou Gilda, que se tornaria mulher de um colega da faculdade, o escritor e crítico literário Antonio Candido. Dessa turma saíram não só Gilda e Antonio Candido, mas Paulo Emílio Salles Gomes, Decio de Almeida Prado, Lourival Gomes Machado e Ruy Coelho, a patota de jovens intelectuais que iria fundar, por iniciativa de Alfredo Mesquita, a revista Clima. Audaciosa para o seu tempo, a publicação teve apenas 16 números, circulando entre 1941 a 1944.

A Palavra Afiada traz opiniões de Gilda sobre diferentes aspectos da arte, revelando o pensamento crítico de alguém que sempre se pautou pelo concreto – herança da infância em contato com a natureza, a observação tátil do mundo. E aí se encontra a pensadora arrojada, que décadas antes do filósofo francês Roland Barthes, provou que a moda não era frufru, mas um sistema de signos marcando diferenças entre os sexos e barreiras de classe. O banquete de ideias prossegue no correr das páginas: Gilda explica por que considerava Machado de Assis um autor teatral menor, por que chegou a preferir Lygia Fagundes Telles a Clarice Lispector, por que vibrou com os experimentos do Teatro de Arena, por que buscava sutilezas no cinema de Visconti, quando era obrigatório buscar conexões políticas. Ao brindar seus interlocutores com finíssimas análises estéticas, foi generosa e entregou coisa maior. Algo da ordem das fulgurações do espírito.

A PALAVRA AFIADAAutor: Gilda de Mello e SouzaOrganização: Walnice Nogueira GalvãoEditora: Ouro Sobre Azul (264 págs., R$ 48)

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