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Gilbert Shelton, o verdadeiro Freak Brother

Um dos precursores dos cartuns underground da década de 60 divide mesa com Robert Crumb na Flip

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Por Redação
Atualização:

Raquel Cozer

 

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SÃO PAULO - Quase meio século como cartunista rendeu a Gilbert Shelton um lugar entre os pioneiros das HQs underground e também caixas e caixas de material inédito. Elas o acompanham desde Nova York, onde, em 1962, publicou os primeiros desenhos como profissional, e ganharam volume em Paris, cidade em que se instalou há 25 anos com a mulher, a agente literária Lora Fountain. Nos últimos tempos, Shelton andou revendo o conteúdo. Imagina ter material suficiente para um livro autobiográfico, que intercale histórias curiosas e ilustrações - uma espécie de caderno de recortes, como define -, mas ainda não falou sobre a ideia com os editores. "Acho que pode ser interessante", avalia, antes de uma breve pausa. "Mas não sei. Talvez as pessoas achem entediante."

 

Difícil acreditar na segunda hipótese. Trata-se, afinal, do pai de Fat Freddy, Phineas e Freewheelin’ Franklin, trio de maconheiros que resumiu, nas histórias de Fabulous Furry Freak Brothers, a psicodelia e o desbunde reinantes entre a juventude mais avançadinha dos anos 60 e 70. Acontece que Shelton sempre fez questão de negar a crença pública de que seus personagens mais conhecidos refletissem seu estilo de vida. Nada que o cartunista tenha contra a maconha, mas ele costuma argumentar que, se a consumisse na mesma quantidade dos personagens, não estaria em condições de contar a história. E, bem, ele chegou em maio último aos 70 anos e continua na ativa, ainda que num ritmo de trabalho bem menor que nos áureos tempos.

 

No próximo dia 3, o artista desembarca no Brasil com a mulher e o casal Aline e Robert Crumb para um temporada de seis dias em Paraty. Ao lado do amigo e criador dos célebres Fritz the Cat e Mr. Natural, participará daquela que é uma das mesas mais concorridas da oitava edição da Flip, no dia 6. "Vi na televisão um documentário sobre Paraty, então agora sei como é a cidade, uma coisa colonial", diz Shelton em conversa por telefone com o Sabático, a fala tão pausada que por vezes dá a impressão de ter concluído o raciocínio quando, na verdade, está apenas pensando na melhor palavra a usar em seguida. "A arquitetura antiga me lembrou muito as construções espanholas do México."

Ao contrário de Crumb, que vive entocado com a mulher numa vila no sul da França, Shelton gosta de viajar. Nasceu no Texas, passou a juventude em Nova York, morou por em Barcelona de 1980 a 1981 e voltou para a Califórnia antes de se mudar de vez para Paris. Não porque rejeitasse a violência dos Estados Unidos e o conservadorismo da sociedade americana, como Crumb, mas por questões profissionais. "Achei que viajaria mais, mas começamos a nos envolver em muitos projetos em Paris. Especialmente Lora", diz, sobre a mulher, que abriu por lá uma agência literária e hoje tem entre seus clientes a família Crumb - a filha do casal de cartunistas, Sophie Crumb, também enveredou para os quadrinhos e terá um livro publicado em novembro.

Ironia. Shelton e Crumb se conheceram em 1969, em Nova York, quando ambos já tinham criado alguns de seus personagens mais famosos. O primeiro de Shelton, Wonder Wart-Hog, paródia do Super-Homem, apareceu numa publicação juvenil em 1962, mas só seis anos depois os Freak Brothers o colocariam entre os grandes do gênero. Naquele mesmo ano, em 1968, Crumb, já conhecido por Friz the Cat, reuniria artistas da contracultura no primeiro número da revista Zap Comix. Por ter alcançado a fama depois do amigo, apesar de ser três anos mais velho, o texano diz se sentir um "protégé" de Robert Crumb. "Ainda me impressiono com o estilo dele. É difícil dizer. Nós dois temos as mesmas influências, mas ele é diferente porque... Ele desenha tanto. É muito melhor que eu. É como estudar um idioma ou uma música. Quanto mais você pratica, melhor você é."

 

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E Shelton não gosta muito de praticar. Em 1974, já com bom status como criador de tiras e livros de quadrinhos, resolveu que precisava de ajuda e convidou o artista e escritor Dave Sheridan para trabalhar com ele nos livros que saíam por sua própria editora de fundo de garagem, a Rip Off Press. Desde então, contou com parceiros como Paul Mavrides e Gerhard Seyfried, com quem passou a intercalar criação de roteiros e ilustrações.

Por quê? Porque ilustrar, explica o pai dos Freak Brothers, não é algo que goste tanto de fazer. "Não sou prolífico, em especial na comparação com o Crumb, que é um desenhista compulsivo. Eu trabalho em projetos específicos. Tenho mais interesse em contar boas histórias, piadas. Desenhar não é meu ponto forte." Com as parcerias, sentiu o trabalho fluir mais rápido, o que lhe deu liberdade para focar mais nos roteiros. A avaliação dele é a de que a história importa mais que a ilustração numa tira. "Se você tiver uma boa história e um desenho ruim, a tira será boa. Mas, se a história não for boa, não haverá arte que a segure."

 

Seja como for, Shelton sabe dizer muito com pouco. Enquanto os quadrinhos underground eram combatidos pelos defensores da ordem e dos bons costumes, o artista resumiu em um cartum todo o preconceito com o qual seu trabalho era visto. Numa imagem de página inteira, os três Freak Brothers apareciam numa cama com uma mulher nua, cercados de drogas, bebidas, armas e pôsteres com dizeres na linha "Fuja do alistamento" e "Trepe pela paz". Deitada, a mulher dizia: "Uau! Isso foi muito louco! Vamos ler mais umas revistas e começar de novo!!" - uma ironia escrachada contra a ideia de que HQs desvirtuavam os jovens. "Qualquer assunto pode ser bom, o difícil é tirar uma boa história dele. O tema central é menos importante que os detalhes de uma história. Em geral, a grande sacada está escondida sob a superfície da trama. Em HQ, é preciso fazer mais ou menos o que faz um dramaturgo numa peça, colocar os leitores ou o público dentro da história, suspender a descrença deles no que está sendo mostrado e fazê-los entrar no espírito da coisa."

 

A autobiografia que boa parte de seus contemporâneos explorou nos quadrinhos ele diz ver nas suas histórias só naquele ponto em que "toda ficção inclui algo de autobiográfico". No caso dos Freak Brothers, afirma: "Se houver alguma semelhança comigo, está muito bem escondida." No fundo, ele se identifica mais é com o quarto personagem da história, o gato de Fat Freddy. O bichano, que apareceu numa tira do trio em 1969, ganhou pouco tempo depois vida e tiras próprias, o Fat Freddy’s Cat. "Talvez eu seja um pouco como os três, mas, vá lá, pareço mais com o gato, que é o mais inteligente deles."

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Rock’n’roll. Embora ainda faça de tempos em tempos histórias dos Freak Brothers e do Fat Freddy’s Cat, o cartunista tem se dedicado mais, nos últimos anos, às aventuras do Not Quite Dead, sobre a banda de rock de menos sucesso no mundo. A série foi criada em 1992 e o livro mais recente de um total de quatro, Last Gig in Shnagrlig, saiu na França em 2009. Ainda não há nenhuma previsão de que seja editada no Brasil. "Preciso falar com meu editor brasileiro", diz Shelton, ao ser informado do fato. "Vou avisar à minha agente, que é minha mulher. Ela ficou muito ocupada com o Gênesis do Crumb e me esqueceu", graceja. A Conrad, que entre 2004 e 2005 publicou dois volumes do Fabulous Furry Freak Brothers, com tradução de Alexandre Matias, afirma que as edições atuais ainda não se esgotaram e que espera vender os exemplares ainda em estoque durante a Flip.

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Outro projeto no qual ele se vê envolvido desde 2003 empacou. Naquele ano, a produtora inglesa Bolexbrothers entrou em contato para transformar uma das histórias dos Freak Brothers numa animação em stop-motion, com bonecos de massinha. O filme leva o nome de uma das aventuras criadas por Shelton para os personagens, Grass Roots, e foi roteirizado por Paul Davis. Na trama, Fat Freddy, Phineas e Freewheelin’ se veem envolvidos com colheitas de maconha geneticamente modificadas, plantadas pelo governo. Um piloto do longa pode ser visto no site www.grassrootsthemovie.com, mas é tudo o que existe de material filmado. "Eles não conseguem dinheiro", explica o cartunista, que participou apenas como consultor. Uma das estratégias para reunir os US$ 10 milhões que viabilizariam a obra é o que a produtora chama de "fundo de frame". O site explica: "Se você quer que seu nome apareça no filme, compre um frame. Doze frames farão seu nome aparecer por meio segundo, o que deve ser visível a olho nu."

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