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Fuzarcas

Dá para encarar paradas duras. Desde que não seja o caos de uma reforma em casa...

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Durante uns dias, tive em casa três pintores (epa!, não é que me saiu um verso alexandrino, a mim que sou tão prosa?), eu dizia, tive em casa três pintores – nenhum deles Giotto, Tintoretto ou Caravaggio, tampouco Bruno Dunley ou Lucas Arruda, jovens talentos da pintura brasileira da minha mais embasbacada admiração. Em vez deles, me tocou receber o Vitoriano, o Fábio e o Bonifácio, que, dispensando paleta & cavalete, aqui estiveram para a modesta porém relevante tarefa de recobrir de branco as paredes do cafofo onde vivo há 24 anos. Ótimos, os três; recomendo.

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Não repare, pois, se, ao me encontrar, às narinas lhe subir um vago cheiro de tinta. É um preço que pago pela alegria de ver recuperada a alvura do mocó. Não o único: além de um punhado de reais, que despendi sem reclamar, passei dias de muito desconforto de corpo e alma. Nenhum fricote, apenas o temperamento de quem, capaz de encarar paradas duras nesta vida, quase entra em parafuso se tiver que escolher um simples parafuso. 

Não que me sinta bom demais para o prosaísmo do cotidiano. Questão de feitio – ou despreparo mesmo. Aqui está um incompetente que nunca foi capaz de sair à procura de um canto onde morar, tendo para tal usufruído, até agora, da imerecida ajuda de almas generosas. Minto. Fiz isso uma vez, e me dei mal. 

Quando vim para São Paulo, foca do Jornal da Tarde, um casal de amigos me ofereceu pouso por tempo ilimitado num quarto e sala onde cabia também um garoto de 11 anos. A superpopulação convinha a nossos bolsos desguarnecidos. Meses mais tarde, tomado de brio imobiliário, fiz minha estreia de inquilino ao alugar um apartamento – no qual mal esquentei lugar, pois água, no Saara, como me pareceu justo chamá-lo, só muito de vez em quando. Devia ter desconfiado no primeiro dia, ao flagrar, da área de serviço, a cena medieval de um vizinho a içar do térreo um balde não de todo cheio. 

Além de viagens intercontinentais sem mala nem sacola, na primeira classe, é claro, minhas fantasias de milionário incluem, em caso de reforma inevitável, copiar o que fez um ex-vizinho ao comprar o apartamento embaixo do meu. O poeta Heitor Ferraz, sobre cujo teto andei por um bom tempo, se mandou de mala, cuia & lira – mas o novo morador, o artista plástico Claudio Pastro, custou a dar as caras. 

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Antes dele, veio seu irmão, espírito prático que por meses comandou estrepitosa reforma. E só quando houve iogurte na geladeira, flor no jarro e cozinheira cantando na cozinha, é que, lampeiro, apareceu o Claudio. Reforma, com ele, nem a de Martinho Lutero.  O mesmo não se diga da arte sacra, em que era especialista – o maior do Brasil, registraram seus obituários, em outubro passado. Avesso a reformas presenciais, mas autoridade graúda no restauro de ícones cristãos. Foi Claudio Pastro, me disseram, quem desenhou o cálice que o papa Francisco empunhou quando em visita a São Paulo. Seu apartamento era um entra e sai de padres e freiras, não faltando anacrônicas batinas a compor um clima de romance de Georges Bernanos. Pena já não estar aqui este vizinho em quem a fé religiosa convivia com gargalhadas de Dionísio. Deram-se bem, o fiel do térreo e o incréu do 1.º andar – o qual, agora, anda inquieto: outra vez vazio o apartamento sob seus pés, voltará o operoso irmão com a zoeira dos pedreiros e encanadores?

Se voltar, que não seja logo, antes que tenha fim outra fuzarca recentemente instalada nos bloquinhos gêmeos do Condomínio Cosme e Damião. No final do ano, um inquilino do Cosme comprou apartamento no Damião, onde vivo. Comprou, contou-me, sem lá ter entrado uma única vez, decidido que já estava a derrubar todas as paredes. 

Desventrado em poucas semanas, durante as quais tive uma ideia do que deve ser a vida na cidade síria de Alepo, o apartamento, porta a porta com a morada do finado Claudio, converteu-se num vasto loft, em cujas entranhas estive faz uns dias, levado pelo dono. 

Ia o vizinho debulhando suas peraltices em pedra e cal, as radicais reformas que faz, fez e com certeza fará, e em mim batendo uma admiração mesclada de inveja. A mesma que sinto ao ver um surfista firme no dorso da onda, ou o pé de valsa Big Road esparramado no forró. Bem que eu gostaria, mas não é para mim. Queixo caído, nessas ocasiões só me consola a lição que Otto Lara Resende ouviu de Manuel Bandeira: é preciso saber escolher as próprias ignorâncias. 

No meu caso, também as próprias incompetências. Muito provavelmente chegarei ao fim de meus dias sem ter derrubado uma parede, uma ditadura, nada. O jeito, quem sabe, é assumir a lacuna em meu favor, é acender de novo a flama dos 20 anos e sair bradando: a reforma não está com nada, viva a revolução! 

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