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Fora do lugar

* Vitrine 1 Até em Paris, capital da leitura, o livro está em baixa, ia eu lamentando enquanto caminhava pelo boulevard Saint-Germain-des-Prés. Nos parques, no metrô, nos ônibus, para não falar nos cafés, ainda se vê bastante gente com os olhos monopolizados por uns retângulos que não são a telinha do celular – mas pululam sinais de que às margens do Sena o livro já teve mais prestígio. Também aqui se fecham livrarias.

Por Humberto Werneck
Atualização:

E não é de hoje: entre 2007 e 2011, leio no Google, desapareceram nada menos de 83, ou 10% do total. De uma, restam vestígios entristecedores: numa esquina do Marais, ainda se lê “librairie” na fachada de uma loja da Nike, onde se oferecem artigos para malhação nem um pouco intelectual. Em outra esquina, l’Abbaye com Bonaparte, a tradicional La Hune esteve fechada por uns meses, e ao reabrir, faz uns dias, voltou empoleirada em ramo novo, com foco na fotografia. Nada a ver com a boa e velha (de 1949) La Hune que alcancei ainda no endereço original, no 170 do boulevard Saint-Germain-des-Prés, ombro a ombro com o Café de Flore e o Deux Magots.

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Era ela que eu recordava quando vi, no outro lado do boulevard, as vitrines feéricas de uma loja cuja fachada negra dobra a esquina de Saints-Pères. Livraria nova!, festejei. De 40 e 50 mil volumes, conforme a fonte, se acomodam em estantes de alto a baixo. Como não entrar imediatamente?

Foi o protagonismo ostensivo do livro, raro mesmo em Paris, que retardou por dois segundos a queda da ficha: eu não estava numa livraria, mas na loja da estilista Sonia Rykiel, cujas paredes e vitrines estarão, até março do ano que vem, tomadas por uma biblioteca das mais semostradeiras.

“Os livros estão à venda?”, perguntei a dois leões de chácara de madame Rykiel. Non, monsieur. Mas podem ser folheados? Também não. Apenas paisagem, então? “Oui, monsieur, décoration.”

Possa ao menos a literatura servir de chamarisco para quem seja mais ligado em haute couture do que em haute culture. * Vitrine 2

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O que faz um exemplar de A Paixão Segundo G.H. na vitrine de uma loja de porcelana portuguesa, a quase bicentenária (1824) Vista Alegre, em pleno bochicho do Chiado, umbigo turístico de Lisboa? O livro de Clarice Lispector faz par com uma sopeira – sim, mas sopeira literária, em cujo interior se lê uma frase pinçada no romance: “Desamparada, te entrego tudo – para que faças disso uma coisa alegre”. O conjunto, do qual foram produzidas 1 mil unidades, traz a assinatura da designer e artista plástica carioca Mariana Valente, neta de Clarice, e custa 250 euros, uns 1.200 reais. Não venha me dizer que é sopa.

O kit clariceano é o produto mais recente da Coleção 1 + 1= 1, projeto da Vista Alegre que, escalando parcerias de texto & visual, já pôs na mesa José Saramago (A Viagem do Elefante), Valter Hugo Mãe (O Filho de Mil Homens) e Afonso Cruz (Enciclopédia da Estória Universal – Arquivos de Dresner), além de Manoel de Oliveira, diretor do longa-metragem Aniki-Bóbó, homenageados, respectivamente, vá saber qual o critério, com uma jarra, uma sopeira, uma bandeja e um bule.

Ao contrário do que se passa na loja de Sonia Rykiel, os livros que se exibem na vitrine da Vista Alegre podem ser lidos. * Vitrine nenhuma De volta ao Brasil, uma boa notícia: saiu, finalmente, uma reedição de O Turista Aprendiz, livro que consolida deliciosos diários de viagem de Mário de Andrade ao Norte e Nordeste do Brasil nos anos 1920, publicados pela primeira vez em 1977, três décadas após a morte do escritor, e há muito desaparecidos até mesmo dos sebos.

Mas cadê o livro? Nem sinal dele nas livrarias mais bem abastecidas de São Paulo, como a Cultura e a da Vila. Se você quer comprar, me orientou um amigo, prepare-se: vai ter que se abalar até o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, responsável pela edição, identificar-se na portaria, subir uma escada, fornecer dados para emissão de um boleto, a ser pago exclusivamente no Banco do Brasil, com todas aquelas filas, e então retornar ao Iphan, onde, parece mentira, entrará na posse de seu exemplar de O Turista Aprendiz, no qual, aliás, acrescentou meu amigo, o texto saboroso de Mário vem acompanhado de notas de pé de página em quantidade suficiente para equipar dezenas de centopeias editoriais.

Encarei a via-crúcis, o tempo todo me lembrando de um rabugento dono de boteco de praia que regulava a saída da cerveja.

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– Mó trampo encher a geladeira – resmungava ele –, e pr’esse povo não há o que baste!