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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Filhos mimados, pais doidos

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Atualização:

Certa vez, uma amiga recebeu um relatório de que o filho tinha problemas psicológicos e devia fazer terapia. Ela fora alertada pela coordenadora da escolinha do moleque de três anos, que ele andava agressivo com coleguinhas. Surpresa, perdida, quase em pânico e, lógico, já se sentindo culpada, por ter criado um "monstro", procurou a terapeuta infantil mais experiente (cara) e famosa da cidade. Na consulta, foram ela e o marido, enquanto a criança brincou numa saleta anexa de ludoterapia, da qual tinham visão por um espelho falso. Depois de uma hora de uma entrevista padrão, em que o casal expôs a rotina da família, a terapeuta passou um tempo na sala anexa com o garotinho. Deu o diagnóstico, categórica: "Não acho que o filho de vocês deva começar uma terapia. Já vocês dois..." Minha mãe nunca foi a uma reunião de pais e mestres nas escolas em que estudei no Rio e em São Paulo, não lia meus boletins, meus trabalhos, o que me deixava perplexo, radicalmente decepcionado, me fazia sentir o mais abandonado dos alunos, pela mais desinteressada das mães. Gesto que, por outro lado, me obrigou desde cedo a identificar e ir atrás das soluções dos próprios problemas, batendo nas portas em que eu poderia bater, como a de coordenadores, diretores, professores e amigos. Deixa eu fazer uma correção: minha mãe nunca foi a uma reunião de pais e mestres nas escolas em que estudei, depois que ficou viúva aos 41 anos com cinco filhos pequenos. Tinha mais o que fazer. Confiava no bom senso das escolas e delegava aos filhos a missão de zelarem pela própria educação. Confesso que eu queria uma mãe como as outras, sentada numa sala de uma escola vazia e silenciosa, numa noite de segunda-feira, ouvindo dos meus professores os meus problemas educacionais, emocionais e comportamentais; se é que são coisas distintas. Pensando nisso, claro que eu disse "sim" ao convite da reunião de pais e mestres da escola em que meu filho, de um ano e um mês, está matriculado. A primeira vez na vida em que eu iria a uma reunião de pais e mestres de uma escola. E como pai! Sem saber se jantava antes ou depois, consultei uma amiga com três filhos, veterana deste tipo de reuniões, que me alertou que elas duram no máximo duas horas, se um pai tagarelar demais. Fez um ar irritado e um gesto com desdém usando a mão, imitando uma boca falante. OK, eu jantaria depois. A reunião foi numa segunda-feira à noite na sala da escola vazia, e durou três horas! Isso porque era a primeira do ano e da vida de muitos dali. E porque eu, no fundão, numa tremenda cara de pau, e com o estômago roncando, encerrei com um bom: "Gente, vamos jantar?" Eu estava lá para ouvir que meu filho é incrível, sociável, a criança mais especial da sua turma, de todo pré, e que em anos nunca houve alguém tão carismático matriculado naquela escola, que talvez até o homenageassem com uma estátua ao lado do banco de areia. E todos bateriam palmas para mim. Ou que me ensinassem como fazê-lo dormir num hipnotismo instantâneo. Ou não chorar quando sai do banho, nem quanto colocamos sapatos, não atirar brinquedos do berço, nem teimar em pegar o meu celular. Nada disso. Nem falaram dele. Nem de ninguém. Falamos de generalizações. Achei todas as observações dos pais pertinentes. Achei que todos, preocupados com isso ou aquilo, estavam legitimados pela condição de pais jovens, com filhos bebês ainda. Sei que não se julga a educação alheia, não se critica a atitude de cada pai, muito menos o comportamento dos filhos. Aliás, o meu, incrível e sociável, já quase arrancou o nariz de um coleguinha, numa mordida interpretada como "carinho excessivo", o que nos deixou envergonhado, me fez pedir desculpas incessantemente aos pais da vítima, temendo que ele fosse classificado já como o temível e abominável Mordedor da Escola. Soube na reunião que tem pais que escolhem escolas com câmeras espalhadas. Querem monitorar seus filhos de casa ou do trabalho pelo computador ou celular. Como soube que tem pais que são contra a mistura de crianças com idades diferentes, e preferem segregar seus pequenos em guetos com seus iguais. Tudo bem, vai. Bebê geralmente insinua pai de primeira viagem, de jovens debutando na vida adulta com um trabalho que ainda não pode ser qualificado como uma carreira. Rola um misto de arrogância e pavor de fazer algo errado. Porém, e aí já é demais, me contaram que tem pais que frequentam reuniões de pais e mestre da FACULDADE dos filhos! Que o Mackenzie passou a fazer encontros com pais no início do curso, que lotam um auditório de mil lugares. Que a faculdade Belas Artes promove encontros entre pais e professores, e a família pode acompanhar pelo portal as notas e a frequência do filhão. E que a ESPM convida as famílias para assistir à aula inaugural e conhecer os professores. Todas de São Paulo, com mensalidade em torno de R$ 3 mil. Sem contar que se detecta que diminuiu a procura de cursos noturnos, aqueles em que o filho trabalha de dia. Que têm mães que levam filhos de mais de 20 anos pra faculdade. Que checa se está estudando, checa as provas e trabalhos, as notas e as faltas, compra material didático. Mães que se tornam "a melhor amiga" da filha. Que se apresentam a professores. E se um filho pega uma DP, lá vão os pais intervir. Vão à escola reclamar da nota do filho para o professor: estou pagando! Educadores apontam que o ingresso na graduação, comparado a gerações anteriores, é mais cedo. Não sei se é verdade, pois todos lá em casa e da minha turma começaram com 17 anos. Teme-se a criação de uma geração mimada sem precedentes. As universidades que estabelecem esse diálogo com as famílias satisfazem uma demanda social e se promovem numa jogada comercial. Mas deveriam repensar. Ou indicar terapeutas aos pais que aceitam convites para as tais reuniões.

Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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